Liberdade de Expressão

Comunicado de imprensa R80/15

A Relatoria Especial manifesta sua preocupação pela compra e implementação de programas de vigilância por parte de Estados do hemisfério

 

21 de julho de 2015 

Washington, D.C. – A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) manifesta sua preocupação diante da revelação de uma grande quantidade de informação que indicaria que vários governos do hemisfério teriam adquirido e implementado programas de vigilância das comunicações eletrônicas que podem gerar um prejuízo grave aos direitos à privacidade e à liberdade de pensamento e expressão na região.

Neste sentido, a Relatoria Especial exorta às autoridades correspondentes a investigar, apresentar uma explicação clara sobre estes fatos e aplicar as sanções correspondentes. Os Estados também devem revisar a legislação pertinente e modificar as suas práticas sobre vigilância, com a finalidade de garantir sua adequação aos princípios internacionais sobre direitos humanos.

Nos últimos dias foram expostos publicamente pelo menos 400 GB de informação da empresa italiana Hacking Team, dedicada à venda do software de espionagem Remote Control System (Sistema de Controle Remoto, RCS por suas iniciais em inglês), dirigido a governos ou agências governamentais, conhecido também como DaVinci ou Galileo. Os documentos que foram filtrados incluiriam contas, correios eletrônicos, dados fiscais, entre outros arquivos.

O software de espionagem vendido pela empresa estaria desenhado para evadir a encriptação nos computadores e telefones celulares, o que permitiria subtrair dados, mensagens, chamadas e correios, conversações de voz através de IP [VOIP, voice over IP] e mensagem instantânea. Com o citado software seria possível também ativar remotamente câmeras e microfones de dispositivos de uso diário. Segundo o site do Hacking Team, "a coleta de evidência nos dispositivos monitorados é silenciosa e a transmissão dos dados coletados desde o dispositivo ao servidor do RCS é criptografada e não é rastejável".

Segundo várias organizações da sociedade civil e relatórios publicados em diferentes meios de comunicação, alguns dos Estados da região seriam ou teriam sido clientes do Hacking Team e estariam fazendo uso de seu software sem ter um respaldo legal claro para fazê-lo. Depois das revelações, alguns Estados negaram qualquer ligação com a empresa Hacking Team e outros indicaram que compraram o software nos termos da lei para a prevenção e investigação do crime organizado e terrorismo.

Com essa revelação, e com os possíveis impactos derivados do uso deste tipo de tecnologias invasivas da privacidade e do direito a exercer a liberdade de expressão sem interferências ilegais, a Relatoria Especial quer lembrar que segundo os padrões internacionais, o uso de programas ou sistemas de vigilância nas comunicações privadas deve ser estabelecido de maneira clara e precisa na lei, ser verdadeiramente excepcional e seletivo, e estar limitado somente ao estritamente necessário para o cumprimento de objetivos imperativos como a investigação de delitos graves definidos na legislação. Tais restrições devem ser estritamente proporcionais e cumprir com as normas internacionais sobre o direito a liberdade de expressão. Esta Relatoria tem manifestado que a vigilância das comunicações e as interferências na privacidade que excedam o estipulado na lei, que se orientem a finalidades diferentes das autorizadas por lei, ou as que se realizem de modo clandestino, devem ser drasticamente punidas. Tais interferências ilegítimas incluem aquelas realizadas por motivos políticos contra defensores de direitos humanos, jornalistas e meios de comunicação independentes.

Em sua Declaração Conjunta sobre programas de vigilância e seu impacto na liberdade de expressão, a Relatoria Especial indicou que a lei deverá servir a um propósito legítimo e estabelecer limites sobre a natureza, âmbito e duração deste tipo de medidas, as razões para ordená-las, as autoridades competentes para autorizar, executar e supervisiona-las e os mecanismos legais para a sua impugnação. Adicionalmente, o acesso às comunicações e a dados pessoais deverá ser autorizado somente nas circunstâncias mais excepcionais definidas na legislação. Quando se invocar a segurança nacional como razão para vigiar a correspondência e os dados pessoais, a lei deve especificar com clareza os critérios que devem ser aplicados para determinar os casos nos quais esse tipo de restrições é legítimo. Sua aplicação somente deverá ser autorizada quando existir um risco claro em relação aos interesses protegidos, e quando esse dano for superior ao interesse geral da sociedade de proteger o direito à privacidade e à livre expressão do pensamento e à circulação de informação.

Adicionalmente, assim como expressou esta Relatoria em seu relatório sobre Liberdade de Expressão e Internet, as decisões de realizar tarefas de vigilância que invadam a privacidade das pessoas devem ser autorizadas por autoridades judiciais independentes, que têm o dever de mostrar as razões pelas quais a medida é idônea para alcançar os fins buscados no caso concreto; se ela é suficientemente restrita para não prejudicar o direito envolvido além do necessário; e se é proporcional em relação ao interesse que se busca promover. Os processos de investigação que se realizem e que envolvam uma invasão da privacidade autorizada por lei e ordenada por um juiz competente, devem respeitar, ademais, outras garantias relacionadas ao devido processo. Os Estados devem garantir que a autoridade judicial seja especializada e competente para adotar decisões judiciais sobre a legalidade da vigilância das comunicações, as tecnologias utilizadas e seu impacto no âmbito dos direitos que possam ser comprometidos.

Por sua parte, o setor privado que realiza e facilita as atividades de vigilância digital deve se esforçar para garantir que se respeitem os direitos humanos. Exorta-se a estas empresas a trabalhar de maneira conjunta para não oferecer ou, eventualmente, denunciar as tentativas de realizar programas de vigilância em massa em oposição aos princípios aqui estabelecidos. Neste sentido, a Oficina do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos em seu relatório sobre o direito à privacidade na era digital (A/HCR/27/37) lembrou que "os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, aprovados pelo Conselho de Direitos Humanos em 2011, proporcionam um marco internacional para prevenir e combater os efeitos adversos associados com as atividades empresariais nos direitos humanos. A responsabilidade de respeitar os direitos humanos se aplica a todas as operações da empresa em todo o mundo, independentemente da localização de seus usuários, e existe independentemente de se o Estado cumpre com as suas obrigações de direitos humanos".

A transparência e o acesso à informação sobre os programas de vigilância também são um elemento essencial numa sociedade democrática. Como tem dito reiteradamente a Relatoria Especial, o direito de acesso à informação pública é um direito fundamental e "deve ser submetido a um sistema limitado de exceções, orientadas a proteger os interesses públicos ou privados relevantes, como a segurança nacional ou os direitos e a segurança das pessoas. As leis que regulam o caráter sigiloso da informação devem definir exatamente o conceito de segurança nacional e especificar claramente os critérios que devem ser aplicados para determinar se determinada informação pode ou não ser declarada sigilosa".

As leis devem garantir que o público possa ter acesso à informação sobre os programas de vigilância de comunicações privadas, as principais regulamentações, seu âmbito, os procedimentos a seguir para sua autorização, a seleção dos objetivos e o uso, intercâmbio, armazenamento e destruição do material interceptado e os controles existentes para garantir que não possam ser utilizados de maneira arbitrária. Adicionalmente, os Estados têm a obrigação de divulgar amplamente a informação sobre programas ilegais de vigilância de comunicações privadas.

Como foi mencionado na Declaração Conjunta sobre programas de vigilância e seu impacto na liberdade de expressão, e segundo o estabelecido nos Princípios Globais sobre Segurança Nacional e o Direito a Informação (Os Princípios de Tshwane), o direito de acesso à informação pública inclui as informações relacionadas com a segurança nacional, salvo exceções expressamente estabelecidas na lei, sempre que resultarem necessárias numa sociedade democrática.

Do mesmo modo, a Relatoria Especial chama a atenção sobre qualquer tentativa destinada a silenciar jornalistas e meios de comunicação que denunciam este tipo de atividades. Em nenhuma circunstância, os jornalistas, membros de meios de comunicação ou membros da sociedade civil que tenham acesso e divulguem informação confidencial sobre este tipo de programas de vigilância, por considerá-la de interesse público, podem ser submetidos a sanções posteriores somente por esse fato. 

Adicionalmente, seria inaceitável que os funcionários públicos sugiram a prática de atos ilegítimos de represália contra aqueles que tenham divulgado informação confidencial, que se refere a possíveis violações aos direitos humanos. Os bloqueios ou sistemas de filtragem de internet impostos por um provedor governamental ou comercial do serviço para impedir que se publique informação sobre esses contratos ou atividades são uma maneira de censura prévia e não podem ser justificados.

Em suma, dado o impacto negativo que estes programas podem ter sobre os diretos a privacidade ou à liberdade de expressão, a legislação respectiva deve estabelecer as garantias necessárias mencionadas. Estes princípios foram indicados no relatório sobre Liberdade de Expressão e Internet da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA/Ser.L/V/II.CIDH/RELE/INF. 11/13), o relatório sobre Terrorismo e Direitos Humanos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA/Ser.L/V/ll.116 Doc. 5 rev. 1 corr), o relatório sobre as consequências da vigilância das comunicações pelos Estados no exercício dos direitos humanos à privacidade e à liberdade de opinião e expressão do Relator Especial das Nações Unidas sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e de Expressão (A/HRC/23/40), a Resolução das Nações Unidas sobre o direito à privacidade na era digital (A/RES/68/167), o relatório da Oficina do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos sobre o direito a privacidade na era digital (A/HRC/27/37), os Princípios Globais sobre Segurança Nacional e o Direito a Informação (os Princípios de Tshwane), e as declarações conjuntas sobre liberdade de expressão e internet, Wikileaks, programas de vigilância e seu impacto na liberdade de expressão, e sobre a liberdade de expressão e as respostas às situações de conflito.

A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão foi criada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) com o objetivo de incentivar a defesa hemisférica do direito à liberdade de pensamento e expressão, considerando seu papel fundamental na consolidação e no desenvolvimento do sistema democrático.

 R80/15