Imprensa da CIDH
Washington D.C. – A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e sua Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE) manifestam sua preocupação com a decisão da Sala de Cassação Civil do Supremo Tribunal de Justiça, que ordenou ao jornal venezuelano El Nacional o pagamento de 237 mil petros – em torno de 13 milhões de dólares – por danos morais. A CIDH e sua RELE conclamam o Estado a se abster de utilizar mecanismos de pressão direta ou indireta voltados ao silenciamento do trabalho informativo das pessoas comunicadoras e a remover todas as restrições desproporcionais que impedem os meios de comunicação de fazerem o seu trabalho.
Segundo informações de conhecimento público, em 11 de agosto de 2015, um ex-presidente e atual deputado da Assembleia Nacional da Venezuela interpôs uma demanda civil contra o jornal El Nacional após este replicar um trabalho do jornal espanhol ABC no qual, por meio do depoimento do ex-guarda-costas do funcionário Leamsy Salazar, se noticia seu suposto vínculo com o narcotráfico. Em 31 de maio de 2018, o Tribunal Terceiro de Primeira Instância no Civil, Mercantil, do Trânsito e Bancário da Circunscrição Judicial da Área Metropolitana de Caracas conheceu a demanda por dano moral e condenou o El Nacional a pagar uma indenização de um bilhão de bolívares. Além disso, determinou a indexação judicial do montante da condenação. Em 14 de novembro de 2018, o referido julgamento foi declarado definitivo. A publicação punida por esta decisão é de elevado interesse público e foi reproduzida por mais de 80 meios de comunicação, incluindo agências da imprensa internacional.
O deputado ainda apresentou uma ação penal por difamação contínua agravada contra os diretores e membros do Conselho editorial do El Nacional e membros dos veículos de comunicação La Patilla e Tal Cual. A demanda enfatiza que "as imputações públicas e lesivas" supostamente praticadas pelos jornais "levam implícitos os contornos de ofensa, ainda que seus autores pretendam justificar e proteger suas ações por trás do conceito de liberdade de informação". Nesse contexto é que, em 9 de novembro de 2015, a CIDH concedeu medidas cautelares em favor de Miguel Henrique Otero, editor presidente do El Nacional, entre outros jornalistas do La Patilla e do Tal Cual, por considerar que se encontravam em situação de gravidade e urgência devido às reiteradas declarações estigmatizantes realizadas por altos funcionários, às ações de monitoramento e vigilância, à proibição de saída do país, entre outros atos estatais que, no seu conjunto, poderiam restringir significativamente o direito à liberdade de expressão.
A quase três anos da sentença civil de primeira instância, em 29 de janeiro de 2021, o representante legal do deputado interpôs um pedido liminar a fim de que fosse ajustado o montante da indenização já que, segundo argumentou, resultaria "exíguo", devido ao tempo transcorrido e à inflação econômica e, portanto, não compensaria o suposto dano causado. Recentemente, em 16 de abril de 2021, a Sala de Cassação Civil do Supremo Tribunal de Justiça declarou procedente o referido pedido e condenou o jornal ao pagamento de 237 mil petros, remetendo o expediente novamente à primeira instância para que se cumprisse com o determinado. Os magistrados entenderam que a publicação da informação questionada constituiu um "dano moral gravíssimo" para o funcionário e gerou um "desprezo público" contra ele, afetando a sua esfera pessoal e familiar assim como o seu entorno social, por se ver "submetido ao escárnio público sem justificação alguma". A sentença também considerou a o dano gerado à sua imagem, reputação e "prestígio perante a sociedade", como ator político, tanto no âmbito nacional como internacional. Ainda, para chegar à sua decisão, o tribunal considerou que "não houve intencionalidade" por parte do deputado "em gerar as notícias difamatórias publicadas", mas que foi sim possível comprovar a culpa do El Nacional, em razão do seu "pleno controle do meio informativo para transmitir os fatos difamatórios".
Além disso, segundo informações públicas, em 2019 o deputado manifestou publicamente o seu interesse em converter as instalações do veículo de comunicação em uma universidade. "Eu demandei o El Nacional e seus donos. O El Nacional tem um edifício sede extraordinário para uma universidade. Tão logo eu tenha a sentença, me digam onde assinar para entregar o edifício para a Universidade Internacional da Comunicação, anunciada pelo nosso presidente Nicolás Maduro", afirmou o dirigente em 4 de dezembro de 2019 durante a transmissão do programa que conduz no canal estatal Venezolana de Televisión (VTV), "Com el mazo dando".
Nos últimos anos, a CIDH documentou a abertura de processos judiciais contra jornalistas e meios de comunicação direcionados a castigar e a inibir críticas à atuação de autoridades estatais ou sobre assuntos de interesse público na Venezuela. Tal como assinalado reiteradamente pela Comissão e pela Corte Interamericana, nas sociedades democráticas os funcionários públicos ou as pessoas que aspiram a ocupar cargos públicos estão mais expostas à crítica cidadã. Este limiar diferenciado de proteção, segundo sustentou a Corte Interamericana, se explica pela exposição voluntária a um escrutínio mais exigente, no qual suas atividades saem do domínio da esfera privada para se inserirem na esfera do debate público. Sobre tal ponto, a Corte Interamericana também precisou que "o controle democrático, por parte da sociedade através da opinião pública, fomenta a transparência das atividades estatais e promove a responsabilidade dos funcionários sobre sua gestão pública, razão pela qual deve existir uma reduzida margem para qualquer restrição do debate político ou do debate sobre questões de interesse público". Isto não significa que a honra dos funcionários públicos ou das pessoas públicas não deva ser juridicamente protegida, mas sim que deve sê-lo de maneira coerente com os princípios do pluralismo democrático.
Diante das considerações anteriores, a Relatoria Especial lembra que as pessoas funcionárias públicas não apenas têm a obrigação de serem mais tolerantes às críticas, mas também, devido à sua condição, contam com mais possibilidades para dar explicações ou responder aos questionamentos e críticas a elas formuladas. Do mesmo modo, o princípio da estrita necessidade exige que os meios escolhidos para reparar um dano sejam os menos custosos para a liberdade de expressão, apelando em primeiro lugar para o direito de resposta ou retratação e, somente no caso de isto ser insuficiente, a responsabilidades jurídicas subsequentes.
Em várias oportunidades, a Corte Interamericana advertiu que o temor a uma sanção civil extremamente elevada pode ser tanto ou mais intimidante e inibidor para o exercício da liberdade de expressão que uma sanção penal. Isto porque tem o potencial de comprometer a vida pessoal e familiar de quem denuncia ou publica informações sobre um funcionário público, além de resultar na autocensura tanto de quem se expressa como de outros potenciais críticos da atuação de um servidor público. Neste sentido, a Relatoria entende que a condenação do Supremo Tribunal da Venezuela contra o El Nacional se transforma em uma grave advertência para qualquer pessoa ou meio de comunicação que emita opiniões ou informações sobre altos funcionários que possam ser consideradas ofensivas, o que contradiz práticas naturais e necessárias em qualquer democracia. Implica ainda em um prejuízo econômico que poderia inclusive afetar a própria existência do jornal.
A decisão do Supremo Tribunal contra o El Nacional se dá no âmbito de uma profunda crise política e institucional na Venezuela, caracterizada entre outras coisas por uma questionada independência judicial e um contexto de repressão generalizada, que resultou nos últimos anos na erosão do Estado de Direito. Em seu Relatório de País de 2017, a CIDH constatou que a complexa e multicausal problemática pela qual o Estado venezuelano atravessa tem sua origem, entre outros fatores, nas intromissões indevidas do poder executivo sobre os outros ramos do poder público, uma situação que prejudica a separação e o equilíbrio dos poderes. Recentemente, em seu comunicado de imprensa publicado em 5 de fevereiro deste ano, a CIDH e sua Relatoria Especial alertaram para o fechamento dos espaços democráticos no país e condenaram os ataques contra pessoas defensoras de direitos humanos e jornalistas. Com o acirramento do contexto, neste caso, diretores do jornal sustentaram que não foram escutados e seus argumentos não foram ponderados pelos juízes.
É dever dos Estados garantir o máximo grau de pluralismo e diversidade no debate público. Para tanto, as sociedades democráticas necessitam de meios de comunicação independentes e plurais que possam levar à cidadania as mais diversas informações e opiniões.
Diante do exposto, a Relatoria chama o Estado da Venezuela a se abster de utilizar mecanismos de pressão direta ou indireta voltados ao silenciamento do trabalho informativo dos comunicadores, de acordo com o princípio 13 da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da CIDH. Em especial, remover todas as restrições desproporcionais que impedem os meios de comunicação de cumprir cabalmente com o seu trabalho. Também exorta o Estado a adequar seu ordenamento jurídico e suas práticas internas aos parâmetros interamericanos em matéria de liberdade de expressão.
A existência dos mecanismos descritos e sua desproporção configuram um risco permanente para a liberdade de imprensa na Venezuela, porém sua ativação por parte de uma pessoa com a responsabilidade e o poder de um deputado é contrária aos parâmetros interamericanos de direitos humanos; confirma um padrão regressivo das liberdades civis e deve despertar um enérgico repúdio e preocupação por parte da comunidade internacional comprometida com os valores democráticos e com os direitos humanos.
A CIDH é um órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujo mandato surge a partir da Carta da OEA e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Comissão Interamericana tem como mandato promover a observância e defesa dos direitos humanos na região e atua como órgão consultivo da OEA na temática. A CIDH é composta por sete membros independentes, que são eleitos pela Assembleia Geral da OEA a título pessoal, sem representarem seus países de origem ou de residência.
No. 096/21