Nota à Imprensa


O diálogo é o único caminho

  23 de fevereiro de 2014

José Miguel Insulza

As manifestações ocorridas em várias cidades da Venezuela nos últimos dias são impressionantes pela magnitude, inaceitáveis pela violência persistente, e dolorosas pela perda de vidas de jovens venezuelanos, o que todos lamentamos.

Manifestações como essas não deveriam ser encaradas como uma novidade na região. Em anos recentes, vimos no Chile, no México, no Brasil, estudantes e jovens que saem às ruas para protestar e exigir soluções, outros setores da sociedade que os acompanham, confrontos com a polícia, prisão de dirigentes, e grupos isolados que promovem atos de vandalismo no final de passeatas pacíficas, desvirtuando o sentido do protesto.

Também há na Venezuela causas reais que explicariam o protesto, entre elas a difícil situação econômica, com inflação, desabastecimento e dólar disparado ou racionado, assim como o aumento da criminalidade, que alguns reconhecem.

Por que então esse confronto leva a tanta violência? Por que muitos que habitualmente se calam diante de outros atropelos hoje lançam clamores incendidos em favor da liberdade e da democracia, exigindo até mesmo intervenção externa? Por que muitos outros, inclusive protagonistas de protestos em outras partes, agora condenam os manifestantes e denunciam intenções totalitárias? Por que a crise na Venezuela é diferente?

Existe entre esta e as demais agitações uma diferença fundamental: o protesto na Venezuela manifesta um confronto político e ideológico de maior envergadura, que é seu verdadeiro deflagrador. Às passeatas de protesto sucederam-se passeatas de apoio. Do duelo de manifestações emerge a realidade de uma divisão interna dos setores da sociedade, que não existe com essa intensidade em nenhum outro país das Américas. O radicalismo do confronto é patente nas posturas de todos os atores. E isso impede que a Venezuela enfrente adequadamente a situação, que seria superável com os recursos de que dispõe, se o país estivesse unido.

A oposição alega a intenção do Governo de estabelecer na Venezuela uma "ditadura comunista", que estatizaria a economia e suprimiria a democracia, a vigência dos direitos humanos e a liberdade de expressão. O Governo e seus partidários afirmam, em contrapartida, que está em marcha um "golpe fascista" para derrubar o Governo à força e impor outra vez o antigo sistema, corrupto e desigual. Todos proclamam sua adesão à paz e ao diálogo, mas exacerbam o confronto, uns pedindo a derrocada de um governo recém-eleito e outros não reconhecendo a representatividade de uma oposição que obteve uma grande quantidade de votos.

Todos querem ganhar, derrotar o adversário. Porém, a verdade é que se um lado ganhasse, a sociedade ficaria irremediavelmente dividida, por muitos anos, entre vencedores e vencidos. Esta não é uma luta de muitos contra poucos, mas de muitos contra muitos; todos com o mesmo direito de viver e prosperar em seu país, independente de sua ideologia ou posição social. Vitória e derrota não são opções para a Venezuela.

É essa divisão que explica a suposta ambiguidade dos governos, organismos internacionais, sociedade civil e outros atores, que querem ajudar, mas não sabem de que maneira. Se não condenam sumariamente o Governo são "covardes" ou "cúmplices". Se se atrevem a fazer uma crítica são "intervencionistas" ou "aliados do imperialismo". A atitude de ambas as partes não é conducente a uma ação benéfica da comunidade internacional para buscar a aproximação e a conciliação. As iniciativas que se nos propõem pretendem, antes, somar-nos à divisão.

Por isso insistimos tanto no diálogo e assim continuaremos. Acreditamos ser possível avançar a democracia se um verdadeiro espaço de confiança for promovido, em que se aceite a diversidade de opiniões, respeitem-se plenamente os direitos da cidadania, canalize-se a busca de soluções por vias institucionais de modo a dar garantias a todos, e se gere um clima de liberdade e entendimento a que todos possam contribuir.

Toda a comunidade internacional fez um apelo para que haja diálogo e acordo, todos pediram o respeito aos direitos humanos e o fim da violência, todos querem a paz na Venezuela e estão dispostos a ajudar a alcançá-la. Recusam a ruptura da institucionalidade, mas recordam ao mesmo tempo a necessidade de se respeitarem os direitos de todos, convocando ao diálogo e ao acordo.

No entanto, quem deve alcançar o acordo são os venezuelanos, antes que seja tarde. Mas se já não existe confiança em ninguém, nenhuma instituição ou indivíduo que possa garantir uma postura equânime e não comprometida, talvez recorrer aos atores externos, provenientes do nosso próprio continente e designados conjuntamente, seja uma alternativa possível.

Não esqueçamos que os capítulos mais tristes da história recente de alguns de nossos países começaram com episódios marcados por violência e intolerância, como os que hoje vemos na sociedade venezuelana, que abriram em nosso continente feridas que ainda não se fecharam por completo.
Que ninguém espere que a OEA emita sentenças, aprofunde a divisão ou se oponha a protestos legítimos. Pode-se esperar de nós a defesa incondicional dos direitos humanos, da liberdade de expressão, da institucionalidade e do Estado de direito. Mas não que qualifiquemos o Governo de "ditadura", tampouco a oposição de "fascista", pois essa é uma linguagem de ódio inútil.

Sobretudo, podem esperar de nós um apelo persistente, obstinado, à reconciliação, ao diálogo e ao acordo, o único caminho possível hoje para a Venezuela. A palavra "vitória" soa mais heroica que "acordo". Mas o acordo é hoje o único caminho possível.

Referencia: PG-002