Discursos

JOSÉ MIGUEL INSULZA, SECRETÁRIO-GERAL DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS
DISCURSO DO SECRETÁRIO-GERAL JOSÉ MIGUEL INSULZA NA SESSÃO EXTRAORDINÁRIA DO CONSELHO PERMANENTE POR OCASIÃO DE SUA POSSE EM 26 DE MAIO DE 2005

maio 26, 2005 - Washington, DC


Minhas primeiras palavras são para reiterar uma vez mais meus agradecimentos aos países membros deste Conselho Permanente que há quase um mês me elegeram para o cargo de Secretário-Geral desta Organização. Agradeço também, do mesmo modo que todos os Senhores, ao Secretário-Geral Interino, Embaixador Luigi Einaudi, por seu excelente trabalho nesta instituição nesses tempos difíceis.

Agradeço também ao Embaixador Cristián Barros o trabalho realizado na direção da equipe de transição, que me permitiu assumir a chefia desta Secretaria-Geral apenas dois dias depois de terminar minhas funções como Ministro do Interior do Governo do Chile.

Dirijo hoje uma saudação especial a todos os funcionários da OEA, pilar fundamental desta Organização. Tenho especial interesse em escutar sempre suas opiniões e em privilegiar uma participação profissional que reconheça a experiência e o mérito, e contribua para agregar valor ao funcionamento da OEA.

Este Conselho Permanente representa os que comandam esta Organização, os países soberanos das Américas. São os Senhores e os governos que representam os que devem dialogar e optar por fórmulas realistas e eficazes para fazer frente a nossas urgentes necessidades. Esta Secretaria-Geral estará sempre disposta a estimular e apoiar esse diálogo e espera colaborar diariamente com o Conselho, na busca dos consensos necessários, que nos possibilitem progredir.

Assumo a Secretaria-Geral num momento complexo. Enfrentamos uma série de desafios para a integração e o futuro do Hemisfério. É necessário que avancemos na consolidação das nossas democracias e no fortalecimento da governabilidade; na proteção dos direitos humanos; no consenso de que o desenvolvimento integral deve ir além do mero crescimento econômico, incorporando os princípios da inclusão e da eqüidade, como base da prosperidade; e numa política de segurança multidimensional, que efetivamente se encarregue dos principais problemas que nessa área afetam a população do Hemisfério.

A OEA tem contribuído de maneira significativa para o reconhecimento, reafirmação e implementação desses princípios e valores. Não basta, no entanto, que tenhamos valores comuns. Esta é uma organização política, e a política não se relaciona somente com valores, mas também com resultados benéficos, com políticas públicas que apliquem efetivamente os fundamentos de nossa comunidade hemisférica.

Precisamos de uma renovada vontade política dos países membros para caminharmos no sentido de uma OEA mais eficaz, com uma agenda focalizada, com prioridades consensuais, mais participativa e aberta à sociedade civil e ao setor privado.

Este é o caminho para conferir maior relevância a esta Organização e aumentar sua capacidade de ação na mobilização dos interesses coletivos.

Convoco-os hoje para fazer desta conjuntura uma oportunidade para reforçar esta Organização e fazê-la ocupar o lugar que lhe cabe como principal foro hemisférico.


Democracia e governabilidade

A Carta Democrática Interamericana é uma das principais conquistas dos povos das Américas e uma obrigação fundamental para seus governantes. Ela lança os alicerces da identidade atual e futura das Américas, constitui um projeto de todos e estabelece os pilares de legitimidade e convivência hemisférica.

A Carta foi assinada para ser cumprida. A Carta Democrática não é mais uma declaração. Todas as nações do Hemisfério que a assinaram assumiram um compromisso solene de tornar realidade todos e cada um de seus conteúdos.

A democracia requer eleições livres e exige vivência das liberdades clássicas, mas também demanda uma vocação irrenunciável para promover a cidadania plena, que goze dos mais amplos direitos civis, sociais e culturais. Declaramos, no primeiro artigo da Carta, que os povos das Américas têm direito à democracia. É nosso dever garantir esse direito, respeitando os direitos democráticos de todos os cidadãos e velando sempre pela plena vigência do Estado de Direito.

É indispensável para o futuro de nossas democracias que a Carta Democrática Interamericana seja efetivamente aplicada. A Organização deve dispor de ferramentas que lhe permitam ter um conhecimento antecipado de eventuais crises e atuar de maneira preventiva com os governos para evitar sua escalada promovendo o diálogo. Isso supõe a existência de mecanismos objetivos e práticos que nos permitam avaliar o funcionamento da democracia nos Estados membros, que, respeitando a autonomia a que têm direito como Estados democráticos soberanos, sejam também úteis para melhorar esse funcionamento, desse modo gerando melhores condições de paz interna e estabilidade.

Devemos também ter a capacidade de reagir ante uma ruptura do sistema democrático, pondo em prática, de maneira oportuna, os instrumentos políticos e diplomáticos que permitam superar a crise e cooperar com a recuperação democrática.

Compete aos países membros acordar os mecanismos de implementação dos compromissos da Carta. A Secretaria-Geral estará sempre disposta a formular suas propostas nesse sentido.

Observei que muitos dos problemas que afetam nossas democracias têm a ver com o bom funcionamento das instituições do Estado e com a frustração que provoca na cidadania a falta de solução para seus problemas concretos. Para incrementar a governabilidade de nossas democracias é necessário priorizar programas que reforcem o desenvolvimento de instituições sólidas, que funcionem para dar segurança à cidadania, permitir o adequado clima para o funcionamento da economia e o crescimento, dar justiça a todos os cidadãos, defender os direitos humanos e garantir a transparência nos atos de governo.

Direitos humanos

A história da nossa região transcorreu paralelamente ao progresso na área dos direitos humanos. Muitos de nossos países viveram episódios traumáticos em que os direitos humanos foram violentados ou suprimidos, e nesses mesmos países as sociedades lutaram para recuperar o valor e a dignidade da vida como centro das preocupações. É por esse motivo que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos constitui uma enorme conquista. Sua promoção e defesa são, por conseguinte, parte de nossa identidade.

Temos um sistema de direitos humanos que funciona bem, embora às vezes sem recursos suficientes, que prestigiou a OEA e garantiu os direitos de muitos cidadãos em momentos difíceis de nossa vida institucional.

O funcionamento do sistema que construímos e sua projeção se apóiam no desenvolvimento de uma relação harmônica com os Estados membros, em que a cooperação tem de desempenhar papel central.

Devemos nos empenhar para que os Estados percebam as ações e decisões dos organismos de direitos humanos como um necessário complemento de suas políticas nacionais de promoção e proteção.

É necessário incentivar, do ponto de vista da cooperação, o diálogo da Corte e da Comissão Interamericanas de Direitos Humanos com os poderes judiciários nacionais.

A assinatura da Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas é certamente uma prioridade, na perspectiva de promover o respeito à dignidade de nossos povos originários e sua efetiva participação num mundo tolerante e plural, que reconheça seus direitos particulares e específicos. Cidadania cultural significa amparar o direito à diferença e conformá-lo a um universo de direitos políticos e de representação cívica.

Se aspiramos a um efetivo sistema de direitos humanos, é preciso garantir os recursos necessários ao cumprimento desses nobres objetivos.


Desenvolvimento integral

O desafio de reforçar a governabilidade requer uma ação coletiva que transcende os governos. Devemos ser capazes de abrir as instituições para mobilização dos interesses da sociedade, para os temas de interesse público, gerando instâncias sólidas e transparentes de participação, bases da formação da vontade coletiva. Porém os progressos neste âmbito não se sustentam sem uma objetiva difusão dos direitos sociais, de uma educação e uma saúde de qualidade, em suma, dotar nossos cidadãos e cidadãos, das condições sociais e materiais para desenvolver seus projetos de vida.

O progresso hemisférico no que diz respeito à democracia só será perceptível se a consolidação da cidadania política for complementada com a instalação decidida e sem retrocessos de uma cidadania também social e cultural.

Vivemos num continente marcado pelos contrastes. Nele convivem a prosperidade e a pobreza extrema. Um dos traços mais destacados da situação social da América Latina é a significativa concentração de renda na maioria dos países, exibindo o mais alto índice de desigualdade do mundo, inclusive em comparação com regiões de menor desenvolvimento social e de níveis de pobreza maiores. Realidades educacionais, sanitárias e habitacionais à altura dos países mais desenvolvidos contrastam em nossa região com a miséria, o analfabetismo, o desemprego, a desnutrição e as más condições sanitárias em que subsiste grande número de nossos cidadãos.

Já diagnosticamos muitas vezes essa grave situação. A OEA enfrenta o desafio político de aprofundar sua ação no âmbito social. Precisamos hoje de políticas públicas eficazes que promovam a igualdade de oportunidades, bem como da participação de todos os setores, de maneira a canalizar para o interesse geral as necessidades mais prementes do cidadão. É crucial que os interesses e perspectivas da sociedade se mobilizem para a gestão de políticas públicas, desse modo contribuindo para a abertura das instituições sociais e políticas para formas mais inclusivas e maduras de integração social. Os direitos sociais são inseparáveis das liberdades políticas e de associação.

A OEA deve estar em condições de promover a cooperação para o desenvolvimento integral e o combate à pobreza no Hemisfério e contribuir para o planejamento e implementação das estratégias nacionais de desenvolvimento. Nesse trabalho, deve-se fortalecer a coordenação com os organismos especializados, no nível tanto regional quanto global, com o setor privado e com a comunidade internacional, a fim de melhorar a coerência e a eficácia no uso dos recursos. Especial atenção deve ser dispensada nessas estratégias de cooperação às economias menores e de menor desenvolvimento relativo, adaptando-as a suas necessidades e sensibilidades específicas.

A negociação de uma Carta Social das Américas representa uma oportunidade para superar nossas diferenças, mediante a definição de propostas institucionais que combatam efetivamente esses males, motivo por que devemos iniciar sem demora sua elaboração.

Ao mesmo tempo, assim como reivindiquei para a Carta Democrática, não podemos neste aspecto limitar-nos a declarações simplesmente. Ao contrário, é indispensável que formulemos os mecanismos adequados e um Plano de Ação concreto para assegurar nossa caminhada em direção aos objetivos propostos pela Carta.

A esse respeito, não posso deixar de mencionar a importância do tema que nossos Chefes de Estado e de Governo irão considerar na Quarta Cúpula das Américas, a ser realizada em Mar del Plata, Argentina, em novembro próximo. “Criar trabalho para enfrentar a pobreza e fortalecer a governabilidade democrática” é o lema dessa Cúpula e continua a ser um imperativo ético e político do Hemisfério.


Segurança multidimensional

O mundo atual globaliza riscos e ameaças a que nenhum país está imune, mas é evidente que eles atingem com maior dureza umas regiões do que outras. Há setores de maior vulnerabilidade, cuja insegurança reside na ausência de capacidade para enfrentar as ameaças globalizadas, os desastres naturais, a criminalidade organizada transnacional, o terrorismo, a AIDS e as pandemias. Por esse motivo, a ética que orienta a ação da OEA nesse campo é a de gerar iniciativas e instrumentos preventivos para todo o Hemisfério, com especial atenção para os países mais vulneráveis.

A Declaração sobre Segurança nas Américas representa um grande passo adiante no reconhecimento do caráter multidimensional dos desafios que se apresentam ao Hemisfério nesse campo. Trata-se de um esforço por enfrentar as ameaças à segurança atendendo também a suas causas.

Devemos continuar a aperfeiçoar os mecanismos regionais existentes, tais como a Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas (CICAD), o Comitê Interamericano contra o Terrorismo (CICTE) e os grupos de peritos sobre delito cibernético, lavagem de dinheiro e corrupção.

Também deve ser revitalizado o Fundo Interamericano de Assistência para Situações de Emergência. O bom funcionamento desse Fundo é essencial para que se continue a prestar assistência aos Estados na elaboração de estratégias preventivas e reativas, especialmente dos países menores e mais vulneráveis a esses fenômenos. A OEA deverá fazer parte de um esforço permanente de prevenção de desastres e redução de seu impacto.


Relação entre o sistema global e o sistema regional

Necessitamos de instituições ágeis e eficazes, no nível regional e mundial, que possam mobilizar e coordenar a ação coletiva. Se queremos um multilateralismo eficiente e integrado, devemos aperfeiçoar a coordenação e a complementaridade no trabalho com o Sistema das Nações Unidas e outras instituições políticas e financeiras do sistema internacional. Em minha intervenção na próxima Assembléia Geral da OEA farei referência a este assunto. Desse modo, poderemos multiplicar a ação multilateral e evitar as duplicações.

O conhecimento e a experiência que a Organização detém da região devem ser aproveitados na formulação de estratégias globais que assegurem a paz e a segurança.

Nesse contexto, me proponho a manter um diálogo fluido com o Secretário-Geral das Nações Unidas, bem como a acompanhar atentamente a evolução de seu processo de reforma no que diz respeito às organizações regionais.

Devemos aspirar a uma Organização capaz de prevenir e enfrentar as crises que afetam a estabilidade da região, desse modo cooperando para a construção de um mundo mais seguro. É essa a motivação da presença da OEA no Haiti. Continuarei a promover uma intensa participação da Organização, mediante a Missão Especial, na reconstrução política, econômica e social conduzida pela Missão de Paz das Nações Unidas nesse país.

O Sistema Interamericano dispõe de uma série de instrumentos, instituições e mandatos que contribuíram para a atualidade da Organização, para a observância de seus princípios e o cumprimento de seus objetivos, bem como para a consideração dos grandes temas. É necessário hoje dar a eles um novo impulso, enriquecê-los e fazê-los acompanhar de novas estratégias e mecanismos, para que colaborem na superação dos desafios atuais da região.

Isso torna indispensável abordar o déficit orçamentário e motivar uma racionalização das contribuições dos países membros para o orçamento ordinário da Organização. A convocação de um período extraordinário de sessões da Assembléia Geral certamente contribuiria para enfrentar esse delicado tema.


Conclusões

Tenho a convicção de que os Estados membros gostariam de ver a OEA como um espaço de cooperação, de diálogo político, como o lugar para onde países de diferentes níveis de poder e de desenvolvimento, e com identidades diversas, convirjam. Isso deve ser percebido como força positiva e não como fonte de distanciamento e confrontação.

A capacidade de lançar um olhar comum com base nos princípios e valores que nos inspiram é chave para que a OEA tenha sentido nas Américas, para que nossos povos sintam que a OEA pode fazer diferença em suas vidas, em suas aspirações, e para poder participar coletivamente da regulamentação de um mundo global.

Iniciamos hoje uma nova etapa em nosso interesse hemisférico comum. Como todo esforço humano, requer convicção, responsabilidade, dedicação, sacrifício e também sonhos. Rogo aos Estados membros que me prestem seu apoio para servir eficientemente a seus interesses e que me acompanhem em nossa tarefa hemisférica comum.

Rogo também aos Senhores que sonhemos juntos para conferir a esta Organização a relevância política que todos almejamos e que nossos povos das Américas merecem. Muito obrigado.