Discursos

EXCELENTÍSSIMO SENHOR EMBAIXADOR CELSO AMORIM
XXXIII ASSEMBLÉIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS - “GOVERNABILIDADE DEMOCRÁTICA NAS AMÉRICAS”

junho 10, 2003 - Santiago de Chile


Desejo inicialmente agradecer à Chanceler Soledad Alvear a hospitalidade. É um prazer voltar ao Chile, pela primeira vez desde o início do Governo Lula. Gostaria também de expressar reconhecimento pelo trabalho realizado pelo Secretário Geral da OEA, César Gaviria, o qual tem sido inestimável ao longo de seus anos à frente da Organizaçao. Quero referir-me, igualmente, às palavras inspiradoras do Presidente Lagos ontem à noite, durante a cerimônia de abertura da presente sessao.
A governabilidade democrática é a capacidade de exercício eficaz do poder em um quadro político de liberdade e pluralismo, no marco do Estado de Direito.
Mas além de apoiar-se na vontade popular, é necessário que os Governos adotem políticas públicas que promovam valores de solidariedade e de justiça social, que sustentem um projeto nacional sólido, conducente à diminuição das desigualdades e da exclusão social.
O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva ressaltou em recente discurso que a “questão social é a grande fronteira a ser defendida e ampliada no mundo globalizado. Quem sabe esteja aí a missão superior do Estado nacional do século XXI.”
A democracia não se limita apenas à representaçao dos interesses da maioria, mas se expressa também no respeito aos direitos das minorias. Neste sentido, é fundamental buscar assegurar igualdade de oportunidade a todos os grupos sociais, que têm sofrido discriminaçao, ao longo da história. Não basta que a lei proteja os direitos das mulheres, dos negros e dos indígenas. Deve-se procurar, ativamente, sua maior inclusao social. No Brasil, temos orgulho de nossa composiçao multi-étnica. Mas sabemos que ainda falta muito para assegurar igualdade de oportunidade para as minorias, que são, na verdade, em alguns casos, maiorias numéricas, como as mulheres e os negros.
O preconceito e a discriminaçao devem ser enfrentados com determinaçao no continente. Por esta razao, o Brasil apresentou, durante esta sessao da Assembléia Geral, projeto de resoluçao sobre o racismo e toda forma de discriminaçao e intolerância, cujo objetivo é a criaçao de uma convençao interamericana sobre o tema.
Avanços importantes foram registrados no campo da democracia em nosso continente. A era dos regimes de exceção chegou ao fim. No esteio dessa transformação, as leis de muitos países incorporaram importantes normas de direitos humanos e mecanismos de proteção ao indivíduo e a grupos minoritários. Foram criadas ou consolidadas instituições como ouvidorias, comissões e procuradorias de direitos humanos. Entidades da sociedade civil passaram a oferecer ao cidadão mais recursos diante de eventuais excessos do Estado.
Isso não significa que podemos estar desatentos aos esforços para manter e preservar a democracia. Tampouco podemos descuidar da administração do Estado. Nossas nações ainda enfrentam desafios que, por vezes, suscitam questionamentos ao Estado por sua aparente falta de capacidade para resolver os problemas que mais afligem a população, como o bem-estar social e a segurança dos cidadãos. A inaptidao do Estado em enfrentar tais questoes desgasta os Governos e corrói a confiança dos cidadaos, sem a qual não há governabilidade possível.
O Presidente Lula tem rebatido duas idéias que vêm sendo defendidas nas últimas décadas como se fossem verdades incontestáveis e que já revelaram sua inconsistência: a primeira é que o Estado nacional deve ser mínimo e, em conseqüência, fraco; a segunda idéia é a de que o mercado resolveria automaticamente todos os problemas da economia e da sociedade. O mercado é, sem dúvida, uma alavanca necessária na vida econômica e devemos assegurar que funcione de forma livre de práticas distorcivas, que inibam a competiçao em detrimento da sociedade. Mas sabemos que há valores que não podem e não devem estar subordinados à lógica mercantil, como o direito de todos a um modo de vida digno, o direito a ter o que comer, o direito à saúde, o direito a ter um emprego decente e uma educaçao de qualidade e o direito à participaçao na vida cultural e política, entre outros.
É importante modernizar o Estado, para que esteja apto a lidar com as transformaçoes atuais. Mas é ainda mais fundamental que a açao do Estado se paute por critérios democráticos, em que estejam tratados com prioridade os campos de atuaçao em que se concentram as maiores necessidades sociais. Tampouco pode o Estado descuidar de atividades que nem sempre o mercado atende satisfatoriamente, como o desenvolvimento tecnológico e o meio ambiente. A construçao, sempre que possível, de parcerias com setores da sociedade civil é positiva, reforçando as decisoes governamentais e facilitando sua implementaçao.
A democracia pressupoe também o combate à corrupçao, em todas as suas formas e em todos os países, sejam eles desenvolvidos ou em desenvolvimento. Onde há corrupçao, não há governabilidade. Nossa luta contra a corrupçao, em todos os níveis de governo, deve ser implacável. Entretanto, não podemos desconhecer que, no mundo de hoje, a governabilidade do setor privado é igualmente importante. Escândalos financeiros e de má administraçao de empresas, sobretudo as de grande porte, provocam impactos que vao muito além de seus dirigentes e acionistas, atingindo consumidores, pequenos investidores e a sociedade como um todo. Os efeitos danosos dessas práticas questionáveis se espraiam pelas bolsas de valores das economias centrais e repercutem nas economias dos países em desenvolvimento, pelo aumento da chamada “aversao ao risco”. Assim, ao mesmo tempo em que melhoramos a qualidade moral de nossos governos, devemos propiciar que se desenvolva a ética corporativa e o sentido da responsabilidade social no setor privado.
A estabilidade democrática e o desenvolvimento econômico-social sao fenômenos que reforçam-se mutuamente. As democracias requerem políticas sólidas, que assegurem um desenvolvimento econômico integral da sociedade. A experiência política dos países americanos demonstra que a governabilidade democrática se fortalece em um ambiente internacional de paz e de segurança. Por outro lado, não podemos ter a ilusao de que seremos capazes de preservar a governabilidade em nosso hemisfério sem um contexto de governabilidade em nível global, o qual só pode ser assegurado por meio do respeito pleno às instâncias multilaterais, a começar pelas Naçoes Unidas.
Como afirmou o Presidente Lula em Evian, “o multilateralismo representa, no plano das relaçoes internacionais, um avanço comparável ao da democracia em termos nacionais. Valorizá-lo é obrigaçao de toda naçao comprometida com o progresso da civilizaçao, independentemente de sua dimensao economica e de seu peso político e militar”. As açoes governamentais decorrentes do processo democrático são duradouras porque se assentam em base legítima. Da mesma forma, decisoes emanadas de foros multilaterais gozam de maior apoio e, por isso, são mais efetivas no longo prazo.
A governabilidade democrática em cada país não prescinde da solidariedade e de um ambiente internacional minimamente favorável. Os países em desenvolvimento, inclusive os da nossa regiao, necessitam de regras de comércio internacional justas, que garantam acesso dos produtos em que detêm vantagens comparativas aos mercados dos países desenvolvidos e que não criem constrangimentos insuperáveis à necessidade de promoverem políticas industriais, tecnológicas e de desenvolvimento social, entre outras.
Negociaçoes comerciais complexas, como as em que nossos países estao envolvidos (e que vao muito além do que se costumava entender por Acordo de Livre Comércio) terao efeitos profundos e duradouros no nosso ordenamento sócio-econômico. Daí o compromisso do Governo do Presidente Lula de incentivar um processo de consulta com diversos setores da sociedade, o que inclui naturalmente os empresários, mas também sindicatos de trabalhadores, associaçoes profissionais, entidades da sociedade civil e, sobretudo, o Congresso Nacional. Isso também é governabilidade democrática.
Igualmente, temos que nos valer de imaginaçao e ousadia, a fim de encontrarmos soluçoes para a escassez de recursos necessários ao combate à fome e à pobreza extrema, e aos investimentos em infra-estrutura, essenciais ao desenvolvimento e à integraçao. No recente encontro de Evian, o Presidente Lula sugeriu a criaçao de um fundo mundial contra a fome. O Presidente mencionou duas hipóteses de financiamento. Uma delas seria a taxaçao do comércio internacional de armas. Outra possibilidade é criar mecanismos para estimular que os países ricos reinvistam nesse fundo percentagem dos juros pagos pelos países devedores. Os chanceleres do Grupo do Rio igualmente discutiram, em Cusco, iniciativa no sentido de estabelecer mecanismos financeiros inovadores com o fim de financiar projetos de desenvolvimento da infra-estrutura.
Tornamo-nos mais conscientes de que a consolidação da democracia é uma tarefa permanente de todos os povos. Sabemos que as alternativas ao Estado de Direito serão sempre o medo e a violência. Devemos reconhecer a necessidade de promover e defender ações que se apoiam na liberdade, na paz e na justiça social.
A construçao da democracia baseia-se na segurança de que a todos será oferecida a oportunidade de um mundo melhor, independentemente de raça, gênero ou origem social ou étnica. A trajetória pessoal e política do Presidente Lula é a prova de que o sonho e a legítima aspiraçao por melhores condiçoes de vida podem se concretizar, por meio do diálogo, da convicçao e da persistência, sem o recurso à violência e não obstante as adversidades. Enquanto houver pessoas privadas de seus direitos mais básicos, a democracia não estará sendo exercida em sua forma plena. Não é possível continuar convivendo com a exclusao social de centenas de milhoes de homens, mulheres e crianças no nosso continente. Nas palavras do Presidente Lula, “a fome não pode esperar. É preciso enfrentá-la com medidas emergenciais e estruturais. Se todos assumirmos nossas responsabilidades, criaremos um ambiente de maior igualdade e de oportunidade para todos”. Somente assim asseguraremos a verdadeira governabilidade democrática.