Discursos

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
O ESTADO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA - CÁTEDRA DAS AMÉRICAS OEA, TALKING POINTS

março 30, 2006 - Washington, DC


I - Introdução.

Minha exposição nesta tarde versa sobre o estado atual da democracia na América Latina.

O tema continua não apenas oportuno, como ganhou, na verdade, uma nova importância mais recentemente.

Restaurada nas décadas de 80 e 90 na região, a democracia permanece formalmente preservada, ainda que, em alguns países, esteja sendo freqüentemente submetida a duras provas e, por isto, esteja ali bastante vulnerável.

Esta vulnerabilidade das instituições democráticas, aliada a um baixo crescimento econômico, tem possibilitado, por sua vez, a volta do populismo e do discurso demagógico na região. Isto representa, ao mesmo tempo, um retrocesso no tempo e uma ameaça à própria democracia tão duramente conquistada. É sobre estes temas que gostaria de fazer algumas reflexões.


II – A região rumo à esquerda? Que tipo de esquerda?

Minha primeira observação é a de que tem tido livro curso atualmente uma percepção, a meu ver simplista e parcialmente equivocada, porém bastante disseminada, de que a América Latina caminha na mesma direção, e de que esta direção estaria claramente à esquerda do espectro político.

A comprovação desta tendência poderia ser encontrada na eleição sucessiva, como se todas estas escolhas obedecessem a um mesmo e único movimento, dos Presidentes Hugo Chávez, na Venezuela; Nestor Kirchner, na Argentina; Luis Inácio Lula da Silva, no Brasil; Tabaré Vázquez, no Uruguai; Evo Morales, na Bolívia, e finalmente Michelle Bachelet, no Chile.

É fato que várias destas novas lideranças na América Latina reivindicam credenciais de esquerda. Vencedores nas urnas, de forma democrática, todos eles souberam detectar e captar em benefício de suas candidaturas um sentimento de desesperança, de cansaço, quando não de revolta aberta em várias partes da América Latina. Um estudo sobre o estado da democracia publicado pelo PNUD no ano passado é claro sobre as razões deste estado de coisas: as promessas de uma vida melhor e mais próspera que a democracia trazia nos anos 70 e 80 ainda não se materializaram para grande parte dos Latinos Americanos. É como se ainda pertencessem, tais promessas, a um horizonte de tempo distante, talvez em outra vida.

Mas o que há de comum entre estas lideranças ditas de esquerda? E o que se entende por esquerda hoje na região?

Quem olhar de forma mais atenta e detida o panorama político atual na América Latina verá talvez mais diferenças do que semelhanças, ou, colocando de outra forma, as diferenças talvez sejam mais relevantes do que as aparentes semelhanças entre as novas lideranças na América Latina.

A América Latina não compõe, felizmente, uma paisagem política uniforme. Há bastante diversidade. Bachellet, Chávez, Vásquez, Kirchner, Lula and Morales têm origens e trajetórias pessoais tão distintas quanto é possível imaginar.

EXPLORAR AQUI, SE FOR PARA ENTRAR EM EXEMPLOS ESPECIFICOS, AS DIFERENÇAS ENTRE O CHILE (CONTINUIDADE DE UMA COLIGAÇÃO HÁ QUATRO MANDATOS), A ARGENTINA (PERONISMO de KIRCHNER, MESMO DE MENEM OU DUHALDE), BOLÏVIA (MORALES RESPONDE A UM PROBLEMA DE EXCLUSÄO ETNICA OU DE IDENTIDADE DA NAÇÃO) E URUGUAI (VAZQUEZ COMO UM LÍDER DE ESQUERDA PRAGMÁTICO).

Além de se inserirem em processos políticos bastante diferentes, a maior parte das novas lideranças da esquerda não está questionando a política econômica herdada dos respectivos Governos anteriores e por muitos atacada, sobretudo durante a campanha eleitoral, como sendo “neoliberal”, por pressupor, entre outros pontos hoje pouco objetáveis, a integração na economia global, o ajuste público, o controle da inflação.

Que esquerda é esta que já não propõe, como antes, a coletivização dos meios de produção e que aceita, talvez com um ajuste redistributivista, a política econômica “neo-liberal” tão dura e publicamente combatida? Trata-se de uma nova esquerda? De fato? Ou do ressurgimento de algo mais velho, conhecido de nós, agora sob nova roupagem. É preciso examinar o que está ocorrendo mais de perto. Do contrário corremos o risco de ficar repetindo palavras cujo sentido original se transformou tanto, nos últimos tempos, que podemos estar simplesmente dizendo algo quando queremos significar outra coisa bem distinta.


III- O Retorno do Populismo. A volta do velho. O Dejá Vu.

Embora haja, portanto, um inegável elemento de verdade na visão de que a América Latina esteja se voltando em bloco para a esquerda, o fato é que, a meu juízo, os processos políticos específicos e as condições econômicas de cada um dos países da região têm resultado não em uma única resposta comum, mas antes num vasto leque de respostas nacionais aos desafios dos tempos atuais. Há menos um movimento coletivo à esquerda do que um sentimento geral de insatisfação dos eleitores com a dificuldade da democracia de lidar com velhos e conhecidos problemas da região: a pobreza, a exclusão, a ausência de perspectivas.

Velhos problemas têm levado a respostas distintas hoje. Em alguns, felizmente, ainda pouquíssimos casos, estas respostas têm adotado a forma do populismo, agora sob a plumagem da esquerda, do nacionalismo, do anti-americanismo. Este populismo em si nada tem de novo, mas antes muito de velho. Às vezes, quando noto que o discurso racional tem sido substituído pela retórica vazia, vaga e repetitiva, tenho a sensação, eu que já tenho uma certa idade, de um certo “dejá vu”, de uma volta ao início dos anos 50 quando a América Latina assistiu a uma pequena onda de governos populistas e nacionalistas (citar, se necessário, Vargas, Perón, Paz Estensoro na Bolívia, Ibarra e Ibãnez no Equador e no Chile).

O populismo está de volta, ainda de forma restrita. Mas está de volta e é uma ameaça à democracia. Que não haja dúvidas sobre isto.

O populismo como fenômeno político surgiu no Século XX junto com as democracias de massas. O populismo é de uma certa forma uma distorção, um desvio de rumo, uma deformação das democracias de massas.

Tanto o populismo como as democracias de massa pressupõem o sufrágio universal em sociedades crescentemente urbanizadas. Estão baseadas no uso intenso de técnicas de comunicação de massa. Diferem, no entanto, em pontos importantes:


i) A democracia se apresenta e se define como um modelo de governo baseado em regras e num conjunto de instituições que formulam estas regras e as implementam. O bom funcionamento das regras e instituições importa mais do que quem quer que esteja no poder. O populismo, por sua vez, é moldado essencialmente pela personalidade, pela ambição pessoal e pela visão política daqueles que estejam ocupando a liderança política, via de regra um líder carismático e também autoritário na medida em que não reconhece outra relação de poder que não seja aquela que ele estabelece com a população;


ii) A legitimidade numa democracia deriva do resultado das urnas e se consolida e se fortalece pelo exercício pleno do Estado de Direito. O populismo busca a legitimidade no oposto disto tudo, na crítica das instituições que supostamente “não operam”, das formas de mediação e representação política que “não funcionam” a contento. Faz, em suma, do ataque às imperfeições da prática democrática sua razão de ser. Os líderes populistas apresentam-se como “outsiders” da política, que querem estabelecer diálogo direto com a população, prescindindo das instituições, das regras e dos processos que dão sustentação de longo prazo à vida política das nações. Recorrem freqüentemente aos referenda ou aos plebiscitos como instrumento de governo.


iii) Finalmente, no que se refere à comunicação, o populismo está assente na manipulação e na propaganda em vez de em fatos ou na opinião informada. Quase sem exceção, os líderes populistas são bons comunicadores, ainda que para este fim tenham de usar a verdade de forma parcimoniosa. Emolduram a realidade conforme lhes pareça adequado. Suas mensagens são geralmente simples, mesmo quando transmitidas sob a forma de longos discursos plenos de vazio palavrório.


IV – As origens históricas do Retorno do Populismo

Gostaria, agora, de analisar a questão da volta de novas formas de populismo à região à luz de evolução histórica recente da América Latina. E farei esta breve retrospectiva histórica com os olhos postos à frente.

Os anos 80 e 90 foram marcados por profundas e rápidas transformações em nossa região. Simultaneamente os regimes militares foram sendo substituídos pela democracia, e os modelos econômicos voltados para dentro, baseados em substituição de importações e com forte presença do Estado, foram sendo gradualmente substituídos por políticas econômicas mais alinhadas com os desafios e as possibilidades trazidas pela globalização.

Foram processos quase simultâneos de reforma, na economia e na forma de organização política do Estado, numa combinação que oferecia certos riscos na medida em que a frustração quanto à falta de progresso material na economia poderia eventualmente transferir-se, pelo menos em parte, para uma descrença na democracia como sistema político.

Poucos têm sido, na região, os países capazes de integrar-se de forma bem sucedida na economia mundial e de colher os frutos da globalização. A globalização nunca pretendeu ser uma rota segura para um mundo economicamente mais justo ou igualitário. Ancora-se na lógica crua dos processos de produção e da economia de escala. Pretende-se uma forma mais eficiente de alocação mundial dos meios de produção. Nunca foi um jogo em que todos tenham oportunidades iguais.

As maiores economias da região ou aqueles países que investiram de forma mais intensa na educação sempre tiveram maiores condições de êxito. O México, o Brasil e o Chile, por exemplo, receberam grande quantidade de investimento direto externo. Economias de porte médio como a Argentina e a Colômbia situam-se num ponto intermediário. Outros países menores, especialmente na América do Sul, perderam com a globalização. Os países da América Central e do Caribe foram capazes de encontrar alguns nichos e de negociar acesso privilegiado ao mercado dos Estados Unidos.

O legado da reforma dos anos 90 foi de forma geral positivo para a região. O crescimento voltou, embora à taxa reduzida de 1,4% ao ano. Mas a riqueza continua a ser distribuída de forma desigual. As economias de região se integraram mais entre si, mas as a sociedades latino-americanas tornaram-se mais duais, mais injustas, com maior nível de desemprego e de informalidade.


V – O caminho à frente. A continuidade das Reformas como Forma de Preservar a Democracia.

Na verdade, o que me parece é faltar, para consolidar de forma definitiva a democracia na América Latina, justamente ampliar, aprofundar o processo de reforma, estendo-a também a esferas do Estado vinculadas estreitamente ao bom funcionamento das instituições. O populismo está preenchendo um espaço deixado vazio pela falta de progresso nas reformas que ampliem os espaços e processos democráticos na forma de organização do Estado.
Temos um Estado reformado parcialmente, no âmbito da economia, que convive freqüentemente com instituições e métodos políticos arcaicos, tradicionais, envelhecidos, inoperantes. Há que completar o processo de reforma para que economias modernas possam operar sustentadas por instituições que respondam aos anseios da população. Desta agenda de reformas políticas devem constar, prioritariamente, os seguintes pontos:

i) A reforma do Judiciário é um tema que me parece assumir importância de primeiro plano. A Justiça ainda é lenta em muitos países da região. A lentidão equivale, na prática, à denegação da Justiça ou, noutras palavras, à própria perpetuação da injustiça. Além disso, a Justiça é muitas vezes cara, de difícil acesso para grande parte da população, que hesita, compreensivelmente, em recorrer ao Judiciário para defender seus interesses mesmo diante de casos flagrantes de injustiça.

Não é descabida a percepção, difundida entre muita gente, de que a Justiça é “para ricos” ou está a serviço de quem pode arcar com os custos e as incertezas de processos morosos, de desfecho imprevisível. A formalidade de um aparato estatal corporativo, bacharelesco, distante da população, agrava esta percepção coletiva sobre aquele que seria um dos tripés essenciais para o bom funcionamento da democracia;.

ii) A reforma política é outro ponto essencial. Por reforma política quero significar, sobretudo, a criação de mecanismos mais eficazes de representação dos interesses da população, pelos quais partidos e políticos estejam necessariamente mais próximos do eleitorado, prestando-lhes contas de suas ações, das posições que adotam nas votações no Legislativo e no exercício de cargos no Executivo. Isto requer maiores exigências para formação de partidos políticos, maior grau de coesão e fidelidade partidárias, distritos eleitorais menores para que o eleitor se identifique com o político que elegeu.
Exige também que se dê maior espaço, dentro do amplo processo de deliberação democrática, para atores que representem diretamente interesses da sociedade, tais como as ONGs, as entidades de classe, os sindicatos, as minorias. Sou também favorável a que se ouça a população, em matérias de interesse nacional, diretamente em plebiscitos ou referendos, a exemplo daqueles que estão ocorrendo na Europa para a confirmação da aceitação da Constituição Européia. É preciso encontrar um novo equilíbrio entre as formas de participação da população na vida nacional em que haja maior espaço para as consultas diretas.

iii) Tolerância zero em relação à corrupção. Tenho a forte convicção de que o desgaste e desprestígio das instituições democráticas na América Latina estão indissociavelmente ligados à corrupção crônica em diversos níveis e nos três poderes em quase todos os países. A corrupção é uma forma disfarçada de violência, corrói tudo e todos por onde passa. Pode ser difícil para nós reconhecermos que nossa região ainda está longe de encontrar-se imune a abusos de corrupção. Mas a população de nossos países, que assiste estarrecida ao espetáculo diário de denúncias pelos meios de comunicação, não perdoará aqueles que cometerem deslizes. Caberá aos líderes democráticos da região anteciparem-se à população e promoverem as reformas necessárias para eliminar ou reduzir drasticamente os níveis de corrupção se quiserem preservar a democracia em seus países, quando não, por interesse próprio, sua permanência mesma no cargo.

iv) Combate à violência e melhor segurança. A violência é endêmica na América Latina, no campo e nas cidades. Com freqüência muito maior do que a que seria desejável, ela é praticada diretamente pelo Estado, ou com sua conivência, ou ainda por omissão do Estado. A população se sente desprotegida, na melhor das hipóteses, quando não diretamente ameaçada por forças policiais que abusam do poder para extorquir dinheiro. Não há sociedade que possa ficar de pé quando é acuada pelas próprias autoridades que são remuneradas para dar-lhe proteção e tranqüilidade;

v) Finalmente, a sustentar todos estas novas frentes de reforma do Estado, vejo a necessidade contínua de investimento em educação, por motivos que me parece desnecessário justificar.
Concluo esta minha palestra com palavras de otimismo em relação ao futuro da América Latina. Para tanto, é preciso que se complete e não que se volte atrás no processo de reforma do Estado. Concluímos em boa parte a reforma econômica do Estado. Esta foi a parte fácil, por assim dizer. Mais árdua será a tarefa de conduzir a reforma do Estado em sua dimensão essencialmente política. Mas este é o trabalho que temos de enfrentar se quisermos seguir à frente orgulhosos de nossa democracia. Com Justiça lenta, políticos que não respondam ao eleitorado, corrupção e insegurança, nenhuma democracia, aliás, nenhum regime, pode se manter. Estaremos deixando a porta aberta para o populismo que, no limite, representa a negação mesma da democracia.