Imprensa da CIDH
Washington D.C.- A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) realizou uma visita de trabalho ao Peru entre os dias 10 e 13 de outubro de 2022 com dois objetivos: monitorar o estado da institucionalidade democrática e observar os impactos aos direitos humanos resultantes dos derramamentos de petróleo.
A delegação da CIDH foi chefiada pelo Vice-Presidente e Relator para o Peru, o Comissário Stuardo Ralón, a Relatora Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, Soledad García Muñoz, e membros da equipe técnica da Secretaria Executiva. Durante a visita, a delegação realizou um total de 24 reuniões em Lima e Callao com autoridades do Sistema Eleitoral e com as diversas autoridades públicas. Também realizou reuniões com organizações da sociedade civil, organismos internacionais e representantes dos povos indígenas afetados pelos derramamentos de petróleo. Também fez uma visita de campo a Ventanilla, Callao, onde pôde ouvir as vozes de pescadores e pescadoras e de suas associações.
A Comissão agradece a abertura e a disposição do Estado peruano de recebê-la durante a visita. Em particular, expressa sua gratidão às organizações da sociedade civil e aos organismos internacionais que forneceram informações importantes, bem como às comunidades, sobreviventes e vítimas que ofereceram seus testemunhos sobre as diversas violações de seus direitos.
A Comissão Interamericana observa que, nos últimos anos, o Peru passou por várias crises políticas devido a vários fatores. Um deles é o uso repetido de três figuras constitucionais que têm o potencial de enfraquecer a separação e o equilíbrio dos poderes e paralisar a governabilidade do país, devido à sua falta de definição objetiva. Estes são: i) acusação constitucional; ii) vacância presidencial por incapacidade moral permanente; e iii) dissolução do Congresso devido à negação de confiança a dois conselhos de ministros. Como resultado, desde 2016, o país teve cinco presidentes e três parlamentos.
O uso destas figuras confirma um forte e constante confronto entre as autoridades públicas. Isto pôde ser observado no âmbito da visita de trabalho, que coincidiu com eventos na vida política do país, como a invasão da casa da irmã do Presidente da República, o anúncio do Procurador Geral da Nação de abrir uma queixa contra o Presidente da República e a declaração do Vice-Presidente da República perante uma sub-comissão do Congresso para um processo que poderia levar à sua destituição e desqualificação. Também foi relatada a apresentação de uma queixa constitucional contra o Procurador Geral da República por um ministro do governo.
A delegação foi informada da persistente mudança nas autoridades responsáveis pela concepção e implementação de políticas públicas que poderiam proteger pessoas e grupos em situações de vulnerabilidade, e impede o progresso com iniciativas concretas de proteção contra todas as formas de discriminação. Esta situação tem um impacto direto no pleno desfrute dos direitos humanos, tais como o direito à vida, integridade física, acesso à saúde e à educação, particularmente para mulheres, crianças, adolescentes, pessoas LGBTI, povos indígenas, pessoas afrodescendentes e migrantes.
Além disso, funcionários/as públicos/as e gerentes de equipes técnicas, entre outras autoridades, expressaram sua preocupação com interrupções em seus planos de trabalho devido à instabilidade democrática que exige a constante priorização dos processos políticos sobre seus próprios papéis e mandatos.
Observa-se que estas interrupções estão ocorrendo num contexto de altos níveis de conflito entre as autoridades públicas, o que tem dificultado a governabilidade do país, levado a um enfraquecimento da agenda legislativa e levantado questões sobre a independência do Judiciário. Além disso, as constantes acusações de corrupção e fraude entre as autoridades têm enfraquecido a confiança nas instituições públicas.
A CIDH está consciente de que todos os Estados tem seu próprio desenho institucional e seus mecanismos contra a corrupção. Entretanto, o fenômeno da corrupção deve ser combatido desde o Estado de Direito e com respeitos aos direitos humanos, em especial o devido processo legal e o princípio da legalidade, conforme estabelecido no Relatório "Corrupção e Direitos Humanos".
Neste contexto, a seguir, examinam-se as três figuras previamente mencionadas, mesmo que não de forma exaustiva, considerando o papel central que tiveram no enfraquecimento da institucionalidade democrática nos últimos anos.
A acusação constitucional, consagrado no artigo 99 da Constituição, autoriza o Congresso a investigar, julgar e sancionar altas autoridades do Estado, tais como o Presidente da República e membros de altos tribunais, por infrações à Constituição. No âmbito da visita, pelo menos seis acusações constitucionais recentes contra o Presidente da República, o Vice-Presidente da República e o Presidente do Júri Nacional de Eleições foram relatadas.
Esta figura carece de uma definição objetiva porque nem a lei nem a Constituição especificam as condutas puníveis e suas consequências correspondentes. Isto abre a possibilidade de arbitrariedade que, por sua vez, mina a separação e a independência dos poderes públicos, a estabilidade democrática e o legítimo exercício do poder.
A acusação constitucional pode entrar em conflito com outras disposições constitucionais, como o Artigo 117, que estabelece que o Presidente da República só pode ser acusado durante seu mandato por quatro motivos específicos. A este respeito, o Procurador Geral da República pediu ao Congresso que interpretasse esta disposição à luz de um suposto controle de convencionalidade; uma atribuição que corresponderia, em princípio, ao Tribunal Constitucional, no âmbito de um processo contencioso.
A CIDH lembra que, embora em alguns casos os órgãos legislativos possam exercer funções jurisdicionais no âmbito do equilíbrio de poderes e do sistema de controle e equilíbrio, suas resoluções devem observar o princípio da legalidade. Isto requer que as condutas puníveis sejam pré-estabelecidas em termos estritos e inequívocos, de modo a delimitar claramente os atos puníveis e estabelecer seus elementos.
A vacância presidencial é contemplada no artigo 113 da Constituição. Esta figura permite ao Congresso declarar a incapacidade moral permanente da pessoa que exerce a presidência da república, resultando na destituição do cargo. No Peru, de dezembro de 2017 até o presente, foram promovidas 6 moções de vacância presidencial por incapacidade moral permanente.
A norma constitucional que contempla esta figura não se refere a condutas puníveis ou suas consequências correspondentes. Por esta razão - assim como a acusação constitucional - representa um risco à separação de poderes e aos direitos políticos tanto da pessoa eleita quanto de seus eleitores.
Durante a visita, a delegação foi informada de um projeto de lei que visava eliminar esta figura. No entanto, tal projeto teria sido arquivado pelo Congresso. A delegação também foi informada de uma decisão da Corte Constitucional que instou o Congresso a legislar sobre a figura e estabeleceu que ela não poderia prosperar sem pelo menos 2/3 dos membros do Congresso.
Reitera-se que, embora em alguns casos os órgãos legislativos possam exercer funções jurisdicionais para garantir o equilíbrio de poderes, suas resoluções devem observar o princípio da legalidade, e que as condutas que podem ser sancionadas devem ser pré-estabelecidas, de forma a delimitar os atos puníveis e estabelecer seus elementos.
A dissolução unilateral do Congresso diante da negação de confiança de dois conselhos de ministros é encontrada no Artigo 134 da Constituição. Ela dá poder ao Presidente para dissolver o Congresso quando este tiver negado a confiança (ou seja, endossado) dois conselhos de ministros, forçando uma convocação antecipada para as eleições parlamentares. A última vez que este recurso foi utilizado foi em 30 de setembro de 2019, durante o governo de Martin Vizcarra, que foi subsequentemente afastado do cargo através da figura de vacância presidencial em razão de incapacidade moral permanente.
Na opinião da CIDH, a aplicação desta figura pelo Poder Executivo representa a anulação de fato do voto popular, prejudica o sistema de partidos políticos e facilita a quebra de uma ordem democrática; daí a urgência de retirá-la do sistema legal ou limitá-la a casos absolutamente excepcionais.
O Peru vive atualmente uma crise constitucional devido a eventos sem precedentes ocorridos nas últimas semanas, incluindo a denúncia constitucional do Procurador-Geral contra o Presidente da República perante o Congresso da República, bem como a acusação constitucional contra o Procurador-Geral perante o Poder Legislativo. Há também uma denúncia em andamento em análise pelo Conselho Nacional de Justiça contra o Procurador-Geral da República. De acordo com as informações disponíveis, o Congresso da República e o Conselho Nacional de Justiça devem emitir pronunciamentos sobre esses procedimentos, nos quais uma ampla argumentação deve ser feita com base no princípio da legalidade e do devido processo, uma ação que está sujeita ao controle constitucional.
A CIDH observa que a Corte Constitucional não emitiu um parecer sobre o âmbito constitucional da incapacidade moral permanente, mesmo em casos que lhe foram apresentados no âmbito de sua jurisdição e competência. Na opinião da Comissão, esta falta de pronunciamento contribuiu para a situação de incerteza jurídica quanto à interpretação deste conceito constitucional. Portanto, para que esta crise seja superada sem prejudicar as instituições democráticas, a Corte Constitucional é chamada a ser um árbitro que evite arbitrariedades ou excessos que violem o princípio da legalidade e do devido processo, que, se não forem respeitados, podem afetar a democracia no Peru.
Por outro lado, foram coletadas informações sobre o impacto nos direitos humanos, em particular nos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA), resultantes dos derramamentos de petróleo no país e foram registradas as respostas do Estado a esta situação, as quais têm sido principalmente de natureza administrativa. Para tanto, foram realizadas reuniões em Lima com representantes dos povos indígenas, agentes do Estado e organizações da sociedade civil. Eles também visitaram a praia Los Delfines, distrito de Ventanilla, e fizeram um passeio de barco pelo porto de Ancón, onde observaram que ainda restam vestígios de hidrocarbonetos, assim como os efeitos que isso tem tido sobre as comunidades e o meio ambiente. Ao mesmo tempo, foi realizada uma reunião em Ancón com as comunidades pesqueiras da região, onde foram ouvidos testemunhos de pessoas afetadas pelo derramamento em janeiro de 2022.
A CIDH e a REDESCA destacam testemunhos que evidenciam os desafios na investigação, punição e reparação adequada e eficaz de pessoas e comunidades afetadas por diversos derramamentos. Além disso, expressam sua preocupação com o impacto aos DESCA resultante desses derramamentos. Em particular, eles destacam testemunhos de graves impactos sobre os direitos à saúde, ao meio ambiente, à alimentação, à água potável e aos direitos trabalhistas das comunidades afetadas, o que, juntamente com a ausência de uma resposta imediata, as colocou em uma situação de muita vulnerabilidade.
Diante disso, representantes das comunidades de pescadores e pescadoras reiteraram a necessidade de que qualquer declaração de reabilitação das praias seja baseada em estudos científicos que garantam a segurança das comunidades, bem como seus direitos de acesso à informação e participação nestes processos. Além disso, destaca-se a urgência de ter a proteção social necessária para enfrentar a perda indefinida de seus empregos e meios de subsistência; em particular, levando em conta a desigualdade entre as comunidades afetadas e os atores empresariais no contexto das indústrias extrativistas do país.
Estes impactos seriam particularmente preocupantes quando se considera o contexto marcado pela pobreza e desigualdade nas comunidades afetadas. Neste sentido, mulheres armadoras e pescadoras deram depoimentos sobre os impactos diferenciados dos derramamentos de petróleo na vida de mulheres, meninas e adolescentes. Deve-se notar que, de acordo com as informações disponíveis, esta situação também foi registrada no litoral norte do país.
Por sua vez, representantes dos povos indígenas da Amazônia e territórios afetados pelos derramamentos reiteraram a necessidade de que o Estado dê uma resposta efetiva aos derramamentos, com uma perspectiva intercultural e respeitando as normas aplicáveis aos direitos dos povos indígenas e outros grupos historicamente discriminados. Além da grave situação de vulnerabilidade na qual as comunidades se encontram, a CIDH recebeu relatos de atos de estigmatização e criminalização de lideranças indígenas, pessoas defensoras do meio ambiente e aquelas que se opõem a projetos extrativistas no país. A este respeito, a CIDH e a REDESCA observam que, embora o Estado tenha indicado que está fazendo esforços para mitigar os danos causados pelos derramamentos, as organizações da sociedade civil insistiram que a negligência e omissão na manutenção do oleoduto do norte do Peru seria a principal causa destes, apesar do fato de que grande parte dos danos aos oleodutos foi atribuída a ações de terceiros nas quais, em alguns casos, membros das comunidades afetadas foram considerados responsáveis.
Os derramamentos de petróleo no Peru são eventos que se repetem e precisam de uma atenção prioritária que garanta a aplicação dos parâmetros e recomendações interamericanos relativos a empresas e direitos humanos contidos no relatório Empresas e Direitos Humanos: parâmetros interamericanos. Neste sentido, é urgente avançar na proteção o e reparação integral das populações atingidas pelos derramamentos de petróleo, com especial atenção aos seus DESCA. Igualmente, é crucial a proteção e não discriminação das pessoas defensoras do meio ambiente e daquelas que se opõem aos projetos extrativistas, assim como investigar de forma abrangente a responsabilidade dos atores empresariais neste contexto. Isto deve vir junto com medidas para assegurar a devida diligência no âmbito das atividades empresariais, garantindo a participação das comunidades atingidas.
A CIDH e a REDESCA instam o Estado do Peru a realizar uma avaliação integral do impacto econômico e social dos derramamentos, sob uma abordagem de direitos humanos que leve em conta seus graves efeitos sobre a saúde das pessoas afetadas. Isto, juntamente com a criação de um fundo de emergência para enfrentar os efeitos sobre as comunidades e os passivos ambientais, que são elementos cruciais para dar uma resposta eficaz aos impactos que os derramamentos estão tendo sobre as populações atingidas. Todas as ações acima mencionadas devem pautar-se pelo respeito e garantia dos direitos de acesso à participação, informação e justiça na área ambiental, para os quais a Comissão e a Relatoria Especial instam o Estado a respeitar e garantir os parâmetros interamericanos neste âmbito, bem como a ratificar o Acordo de Escazú, como medida adicional para avançar na proteção destes direitos.
Finalmente, a Comissão reitera que a democracia está fortemente ligada aos direitos humanos. Neste sentido, a Carta da OEA e a Carta Democrática Interamericana, assim como vários instrumentos internacionais estabelecem que o respeito aos direitos humanos, o acesso ao poder e seu exercício com estrita adesão ao Estado de Direito, a realização de eleições periódicas, livres e justas, e a separação e independência dos poderes públicos são elementos essenciais da democracia para alcançar a estabilidade, a paz e o desenvolvimento na região.
Consequentemente, o Estado do Peru, especialmente o Congresso da República e o Tribunal Constitucional, são instados a regulamentar e delimitar as três figuras aqui mencionadas, a fim de garantir objetividade e imparcialidade, respeitando o princípio da legalidade e garantindo a separação e o equilíbrio de poderes. A Comissão também exorta todos os ramos do governo a se absterem de invocar o uso arbitrário da força ou a ruptura institucional.
A CIDH é um órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujo mandato decorre da Carta da OEA e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Comissão Interamericana tem o mandato de promover a aplicação e a defesa dos direitos humanos na região e atua como órgão consultivo da OEA nesta área. A CIDH é composta por sete membros independentes que são eleitos pela Assembleia Geral da OEA de forma pessoal, e não representam seus países de origem ou residência.
No. 233/22
5:41 PM