Imprensa da CIDH
Washington, D.C. - A CIDH reitera o chamado ao Estado de El Salvador para que assegure que as ações relativas às políticas de segurança pública e penitenciária sejam implementadas dentro dos limites e procedimentos que garantam o respeito aos direitos e à dignidade humana. Diante da segunda prorrogação do Regime de Exceção, a Comissão alerta o Estado sobre a sua obrigação internacional de assegurar as garantias judiciais, o devido processo e o acesso a um recurso judicial para o respeito aos direitos e liberdades cuja suspensão não está autorizada pelo direito internacional dos direitos humanos.
Em 25 de maio, foi emitido o Decreto Legislativo N° 396 de 2022 que, pela segunda vez, prolonga por 30 dias os efeitos do Decreto Legislativo N° 333, que declarou Regime de Exceção em todo o território nacional. O novo decreto prorroga a suspensão de direitos e garantias regulados pelos artigos 7, inc. 1°, 12 in. 2° e 24 da Constituição da República, e estabelece que se referem à liberdade de associação, ao direito de defesa, ao prazo da prisão administrativa, à inviolabilidade da correspondência e à intervenção das telecomunicações.
O Decreto N° 396 também estabelece que "de modo algum deve se entender que as prorrogações sucessivas estejam proibidas. Elas são admissíveis sempre que as circunstâncias que motivaram a suspensão de direitos continuem". Em acréscimo, afirma que o regime de exceção "forneceu ao Estado ferramentas jurídicas eficazes no combate à delinquência e aos grupos terroristas [...], assim como mecanismos de investigação policial, fiscal e judicial que permitiram capturar e processar vários dos responsáveis e cabeças" desses grupos.
O Estado informou à Comissão que a necessidade de medidas excepcionais se justificava porque o arcabouço jurídico e institucional existente não foi suficiente para conter a onda de aumentos no número de homicídios violentos e de graves perturbações da ordem pública. Também se referiu à proporcionalidade da medida porque não teria sido restringido o direito de reunião e de associação da população em geral, mas apenas o necessário para combater as ações ilegais e ilegítimas dos integrantes de gangues ("pandillas") ou grupos criminosos. Segundo as informações publicadas pelo Executivo, o mês de abril foi considerado o mais seguro na história do país.
Nesse sentido, o artigo 27.1 da Convenção Americana dispõe que em caso de guerra, de perigo público ou de outra emergência que ameace a independência ou segurança do Estado parte, este poderá adotar disposições que, na medida e por tempo estritamente limitados às exigências da situação, suspendam as obrigações contraídas em virtude da Convenção, sempre que tais disposições sejam incompatíveis com as demais obrigações a ele impostas pelo direito internacional e não envolvam qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social. A Convenção Americana também estabelece, em seu artigo 27.2, uma série de direitos que não podem ser suspensos, e reconhece que tampouco podem ser suspensas as garantias judiciais indispensáveis para a proteção de tais direitos. Por sua vez, a Corte Interamericana tem sustentado que a suspensão de garantias não constitui um meio para enfrentar a criminalidade comum.
Assim, preocupam a Comissão as prorrogações da suspensão de direitos contidas no regime de exceção e as consequentes restrições aos direitos humanos no lugar da implementação de políticas públicas de segurança pública que incorporem os parâmetros de direitos humanos como guia e, ao mesmo tempo, como limite intransponível para as intervenções estatais. A CIDH reitera ao Estado de El Salvador seu chamado para assegurar que, tanto as ações de prevenção, como as relativas à investigação, julgamento e sanção dos crimes sejam implementadas dentro dos limites e procedimentos que garantam a segurança pública e o respeito aos direitos humanos e às garantias judiciais, preservando a dignidade humana como um todo.
Por outro lado, em decorrência do regime de exceção, e de acordo com informações da Polícia Nacional Civil, em 31 de maio de 2021, mais de 36 mil pessoas foram detidas durante sua vigência. Além disso, em 25 de maio, mais de 26 mil se encontravam detidas provisoriamente.
Por sua vez, organizações da sociedade civil manifestaram à CIDH a falta de informações públicas e precisas sobre o número de pessoas detidas, e sobre os lugares nos quais elas se encontrariam, do mesmo modo as pessoas libertadas. Ao mesmo tempo, centenas de familiares de pessoas supostamente detidas se aglomeram em torno dos centros de detenção em busca de informações sobre seus paradeiros. As organizações forneceram informações preocupantes sobre a prática de detenções massivas, ilegais, arbitrárias, baseadas em perfis discriminatórios de idade, condição socioeconômica e aparência física, como tatuagens; assim como sobre a falta de informações sobre os motivos das prisões, restrições de acesso à defesa técnica e ao seu exercício e a realização, de forma sumária, de audiências judiciais coletivas contra até 500 pessoas. Também informaram que a Procuradoria Geral da República se encontra sobrecarregada em sua capacidade para lidar com tais casos.
A Comissão insta o Estado a cumprir com sua obrigação de informar imediatamente à pessoa detida, aos seus familiares e representantes, sobre os motivos e razões da sua detenção. Também se deve informar o lugar da privação de liberdade. Este dever "constitui um mecanismo para evitar detenções arbitrárias ou ilegais desde o momento da privação de liberdade e, ao mesmo tempo, garantir o direito de defesa". Do mesmo modo, o artigo 7 da Convenção exige a pronta e efetiva supervisão judicial das instâncias de detenção a fim de proteger a integridade das pessoas presas. A Corte Interamericana tem sustentado que o direito a um recurso efetivo perante os juízes ou tribunais nacionais competentes, independentes e imparciais constitui um dos pilares básicos, não somente da Convenção Americana, mas igualmente do próprio Estado de Direito em uma sociedade democrática.
As garantias judiciais e a proteção judicial devem ser garantidas para todas as pessoas e em todas as circunstâncias relacionadas à privação da liberdade, inclusive no âmbito do regime de exceção. Isso considerando que constituem também um meio para salvaguardar o respeito à vida e à integridade da pessoa, para impedir o desaparecimento forçado e oferecem, por sua vez, uma proteção contra a tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes, segundo reconhecido pela Corte Interamericana.
A CIDH também expressa preocupação pelas deploráveis condições de detenção das pessoas presas, constatadas no âmbito da visita in loco realizada ao país em 2019. Nesse sentido, a CIDH observou a deficiente infraestrutura, condições de insalubridade, falta de higiene, atenção médica insuficiente e escasso e inadequado acesso à água nos centros de detenção. Esta situação teria se agravado no âmbito do regime de exceção, representando sérios riscos para a vida e a integridade das pessoas sob a custódia do Estado. Segundo informações da sociedade civil, tais condições se caracterizariam principalmente pela superlotação, negligente atenção médica, alimentação insuficiente em face da redução de alimentos, ausência de contato com o mundo exterior causada pela suspensão de visitas e chamadas, e emprego de maus tratos tais como espancamentos e uso de gás de pimenta.
Em acréscimo, segundo informações públicas, entre 3 de abril e 29 de maio, ao menos 21 pessoas privadas de liberdade perderam a vida, das quais ao menos 15 foram detidas durante o regime de exceção. Uma pessoa detida tinha deficiência física, quatorze delas estavam no Centro Penal de Izalco, em Sonsonate; três no Centro Penal La Esperanza, em El Salvador; e uma no Centro Penal de Quezaltepeque, em La Libertad. Pelo menos dez das mortes – incluída a da pessoa com deficiência – foram causadas por espancamentos. Cinco pessoas teriam perdido a vida por edema pulmonar; no entanto, em dois casos, familiares suspeitam que foram vítimas de homicídio. Ainda, duas pessoas teriam morrido pela falta de acesso a medicamentos.
Os Estados são garantes dos direitos das pessoas privadas de liberdade e têm o dever jurídico incontornável de tomar ações concretas para garantir a vida, saúde e integridade de todas as pessoas que se encontrem sob sua custódia. A obrigação dos Estados implica que devem adotar medidas apropriadas e eficazes para prevenir a qualquer momento aquelas situações que possam colocar em risco os direitos das pessoas sob sua custódia. Entre elas, implementar ações para prevenir atos de violência – inclusive maus tratos -, e fornecer serviços de saúde oportunos e adequados. Quanto às pessoas com deficiência, os Estados devem implementar ações especiais que contemplem um enfoque diferenciado, isto é, que considerem suas condições especiais que possam aumentar os riscos de violência e discriminação na detenção.
Por último, a CIDH chama o Estado salvadorenho a adotar as medidas necessárias para reduzir a superlotação por meio da aplicação de medidas alternativas à privação de liberdade, assim como a garantir condições de detenção dignas, a assegurar alimentação suficiente e de qualidade, e a garantir o contato das pessoas presas com o mundo exterior através de visitas e chamadas regulares. Também urge o estado salvadorenho a investigar as mortes ocorridas de forma rápida, séria e imparcial, identificar e sancionar os responsáveis, reparar as vítimas e adotar as medidas necessárias para evitar mais mortes de pessoas que se encontram sob custódia estatal.
A CIDH reconhece que a sociedade salvadorenha tem enfrentado por anos altos índices de violência. Conforme documentou , em alguns lugares a governabilidade foi perdida para grupos criminosos que controlam a vida cotidiana das pessoas por meio de ameaças e extorsão, além da violência gerada pelas rivalidades e conflitos entre tais grupos. Ao mesmo tempo, saúda que o tema da segurança pública seja uma prioridade do Estado; contudo, lembra que, em uma sociedade democrática regida por um Estado de Direito, toda medida de controle da segurança pública deve ser implementada com respeito aos direitos humanos e em conformidade com as obrigações internacionais assumidas na matéria.
A CIDH é um órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujo mandato surge a partir da Carta da OEA e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Comissão Interamericana tem como mandato promover a observância e defesa dos direitos humanos na região e atua como órgão consultivo da OEA na temática. A CIDH é composta por sete membros independentes, que são eleitos pela Assembleia Geral da OEA a título pessoal, sem representarem seus países de origem ou de residência.
No. 126/22
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