Discursos

SENHOR SILVIO JOSÉ ALBUQUERQUE E SILVA, REPRESENTANTE ALTERNO DO BRASIL, PRESIDENTE DO GRUPO DE TRABALHO ENCARREGADO DE ELABORAR UM PROJETO DE CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA O RACISMO E TODA FORMA DE DISCRIMINAÇÃO E INTOLERÂNCIA
DISCURSO DO SENHOR SILVIO JOSÉ ALBUQUERQUE E SILVA, REPRESENTANTE ALTERNO DO BRASIL APRESENTANDO O ANTEPROJETO DE CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA O RACISMO E TODA FORMA DE DISCRIMINAÇÃO E INTOLERÂNCIA

abril 18, 2006 - Washington, DC


1. O Anteprojeto de Convenção Interamericana contra o Racismo e Toda Forma de Discriminação e Intolerância elaborado pela presidência do GT é resultado de um esforço de construção de um texto que reflita importantes conceitos trazidos à consideração do GT por representantes dos Estados membros e da sociedade civil, acadêmicos e funcionários da OEA e das Nações Unidas ao longo do primeiro ano de atividades do Grupo. Trata-se de texto abrangente e maximalista, que buscou ainda incorporar sugestões formuladas por especialistas no tema, a partir de consultas informais realizadas pela presidência do GT ao longo dos últimos meses, e elementos da Declaração e Plano de Ação da Conferência Regional de Santiago, de dezembro de 2000, assinada pelos 34 Estados-Membros da OEA.

2. O anteprojeto compõe-se de 13 parágrafos preambulares e 26 artigos divididos em seis capítulos:

Definição e Âmbito de Aplicação;
Atos e Manifestações de Racismo, Discriminação e Intolerância;
Direitos Protegidos;
Deveres dos Estados;
Mecanismos de Proteção; e
Disposições Gerais

3. A parte preambular do documento dispõe sobre os antecedentes e os propósitos centrais da futura Convenção. Dentre os seus elementos centrais, cabe ressaltar:

a) reafirmação de princípios gerais do direito internacional dos direitos humanos e do direito costumeiro internacional, como o da dignidade inerente a toda pessoa humana e o da igualdade e não discriminação entre os seres humanos;
b) introdução da obrigatoriedade da adoção de medidas ou políticas de ação afirmativa em favor de indivíduos ou grupos discriminados, a fim de promover condições eqüitativas de igualdade de oportunidade e combater a discriminação em suas manifestações individuais, estruturais e institucionais;
c) reconhecimento da existência de formas múltiplas ou agravadas de racismo, discriminação e intolerância em função de uma combinação de fatores;
d) ampliação das bases ou fundamentos para a discriminação que constam dos instrumentos vigentes de proteção geral e especial dos direitos humanos, inserindo-se, entre outros, os seguintes elementos: raça, cor, etnia, sexo, idade, orientação sexual, idioma, religião, condição de migrante, refugiado ou deslocado, nascimento, condição infecto-contagiosa estigmatizada e deficiência;
e) reconhecimento da condição de vítima de, entre outros, afrodescendentes, povos indígenas, migrantes e seus familiares, minorias raciais, étnicas, sexuais, culturais, religiosas ou lingüísticas.

4. No capítulo sobre a “Definição e Âmbito de Aplicação”, são definidos conceitos centrais à futura Convenção: racismo, discriminação, discriminação direta, discriminação indireta, intolerância e projeto de vida. Na elaboração de tais conceitos, houve a preocupação, ressaltada pelo documento preliminar encaminhado pelo Governo da Colômbia, de evitar-se a referência a características inalteráveis que terminem por tornar as definições estáticas. Tais características impediriam que viessem a ser contempladas na definição as modalidades futuras e inovadoras de discriminação, de caráter imprevisível em vista da mudança da realidade e do transcurso do tempo.

5. A elaboração do conceito de discriminação indireta e sua explícita condenação no texto da Convenção Interamericana são cruciais para o enfrentamento da marginalização de facto e a invisibilidade que afetam as vítimas de racismo, discriminação e intolerância no Hemisfério. Embora a noção de discriminação indireta esteja presente, de forma implícita, na redação do artigo 1(1) da Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD), a definição que se propõe inserir na Convenção Interamericana é mais completa e objetiva na caracterização de um aspecto comumente ignorado dos atos discriminatórios.

6. O anteprojeto inova ao definir o conceito de “medidas especiais”, também conhecidas como medidas de discriminação positiva, reconhecendo a legalidade de sua aplicação e sua importância para a promoção da igualdade substancial (“de facto”) de indivíduos e grupos vítimas de discriminação. As medidas especiais, expressas na forma de políticas de ação afirmativa tomadas pelo Estado ou por particulares em favor dos direitos de indivíduos ou grupos discriminados - em quaisquer campos da atividade humana, seja privado ou público -, são entendidas como instrumento valioso para a superação das barreiras impostas pela discriminação a que os seres humanos desfrutem plenamente de seus direitos. Os grupos que devem ter acesso às medidas especiais de discriminação positiva são os que se encontrem em situação permanente de desvantagem em função de condições não-voluntárias, que o impedem o acesso à igualdade real de oportunidades.

7. A introdução no anteprojeto do conceito de medidas especiais ou discriminação positiva representa o reconhecimento de que se existem desvantagens estruturais entre os diversos indivíduos e grupos de uma sociedade, cabendo ao Estado a obrigação de tomá-las em conta na formulação de suas ações e políticas públicas. O caráter de obrigatoriedade de tais medidas especiais é o elemento inovador do anteprojeto em relação à Convenção das Nações Unidas de 1965.

8. Consta ainda do texto proposto o conceito de “projeto de vida” (aplicado às circustâncias específicas dos atos ou manifestações de racismo, discriminação e intolerância). Trata-se da busca de consolidação, no futuro tratado regional de direitos humanos, de importante princípio cunhado, desenvolvido e consagrado pela jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O conceito de “projeto de vida” – presente nas sentenças de casos como Villagran Morales v. Guatelama (19/11/1999) e Moiwana Village v Suriname (15/6/2005) – guarda relação com a noção do que a Corte denominou “realização integral da pessoa afetada” por determinados atos de violação dos direitos humanos (parágrafo 147 da Sentença de Reparações do Caso Loayza Tamayo v. Peru).


9. No que concerne ao âmbito de aplicação dos direitos e deveres previstos na futura Convenção Interamericana, o anteprojeto propõe que suas provisões abarquem tanto o campo privado quanto o público. Tal preocupação de expandir o escopo de aplicação da Convenção resulta da percepção de que diferentes aspectos da discriminação ocorrem em âmbitos privados (caso do mercado de trabalho), produzindo efeitos sobre distintas esferas da vida social, política, econômica e cultural de um Estado. No sistema interamericano de direitos humanos, duas convenções ( Convenção de Belém do Pará, em seus artigos 1, 2.1, 3 e 8c, e Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra os Portadores de Deficiência, em seu artigo 3o ) estendem seu campo de cobertura à esfera privada. A Convenção das Nações Unidas de 1965 não abordou o tema.

10. O capítulo II do anteprojeto trata dos atos e manifestações de racismo, discriminação e intolerância. O propósito desse capítulo é relacionar, de forma não-exaustiva, práticas discriminatórias que tenham por objeto impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos humanos e da igualdade de oprtunidade. Adotou-se, no caso, a mesma metodologia utilizada pelo legislador mexicano ao elaborar a “Lei Federal para Prevenr e Eliminar a Discriminação”, de abril de 2003. O anteprojeto de Convenção Interamericana lista uma série de práticas discriminatórias que, embora se enquadrem plenamente na definição geral de discriminação contida no capítulo primeiro do documento, se diferenciam, em sua maioria, por seu caráter de contemporaneidade.

11. O capítulo III trata dos direitos das vítimas de racismo, discriminação e intolerância. O direito à igualdade e à não-discriminação, consagrado no caput do artigo 3, serve como base fundamental do anteprojeto. O documento reafirma a premissa de que o regime internacional de proteção dos direitos humanos foi criado e funciona em função da igualdade entre todos os seres humanos, o que torna incompatível toda e qualquer prática discriminatória. Propõe-se o reconhecimento do chamado “direito à discriminação positiva” de indivíduos ou grupos discriminados. Todos os demais direitos elencados no capítulo III vinculam-se, direta ou indiretamente, a esses princípios e direitos fundadores. Em sua maioria, os direitos listados encontram-se presentes em outros instrumentos internacionais e regionais de proteção geral e particular dos direitos humanos. Trata-se de prática recorrente em instrumentos regionais (caso da Convenção de Belém do Pará) e mesmo internacionais de proteção especial dos direitos humanos (caso da própria ICERD, que reitera diversos direitos consagrados na Declaração Universal). Julgou-se importante reafirmá-los na futura Convenção Interamericana não apenas para reforçar seu valor como princípios tributários do direito à igualdade entre todos os seres humanos, mas para inseri-los no contexto específico da luta contra o racismo, a discriminação e a intolerância no Hemisfério. Evitou-se o tratamento específico dos direitos de cada um dos grupos sujeitos à discriminação nas Américas. Preferiu-se consagrar uma série de direitos de natureza geral, aplicáveis a todos os indivíduos ou grupos discriminados ou passíveis de discriminação.

12. O capítulo das obrigações guarda relação direta com o capítulo anterior, uma vez que, no campo dos direitos humanos, a correspondência entre direitos (individuais e coletivos) e obrigações dos Estados deve ser absoluta. Traçam-se inicialmente deveres genéricos do Estado de: estipular proibições gerais contra toda sorte de discriminação; abster-se de qualquer ação ou prática discriminatória; e adotar políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tais práticas. A seguir, desenham-se obrigações específicas para os vários direitos consagrados no documento e as diversas facetas ou características das manifestações discriminatórias na região.


13. Na elaboração desse capítulo do anteprojeto buscou-se não reforçar a percepção ilusória de que o racismo, a discriminação e a intolerância podem ser enfrentados e eliminados simplesmente por meio de sua proibição legal e da garantia pelo Estado do acesso das vítimas à justiça e à justa reparação. Fundamentalmente, essa foi a estratégia central de enfrentamento da discriminação racial dos principais instrumentos de direitos humanos das Nações Unidas. Embora seja indispensável tornar as manifestações de discriminação e intolerância ilegais e assegurar o direito às garantias judiciais, tais iniciativas são incapazes de, isoladamente, erradicar, ou mesmo reduzir substantivamente, as práticas racistas e discriminatórias em uma sociedade. Por essa razão, o projeto de Convenção Interamericana atribui papel importante a uma série de iniciativas no campo da educação, das políticas públicas de promoção da igualdade de oportunidade e da cooperação internacional.

14. Outro elemento importante presente no capítulo das obrigacões é o não reconhecimento da existência de qualquer contradição entre o princípio da proteção geral contra a discriminação e a formulação de políticas ou medidas especiais de proteção jurídica em favor de determinados indivíduos ou grupos (afrodescendentes, povos indígenas, migrantes, mulheres, homossexais, crianças, idososos, minorias religiosas, etc). Tais proteções, expressas nas políticas nacionais de promoção da igualdade de oportunidade orientam a norma jurídica, tornando-a mais efetiva ao indicar os segmentos da sociedade que requerem proteção especial ou diferenciada. Além disso, em nada comprometem o princípio da isonomia ou da igualdade de todos perante a lei, mas antes o aperfeiçoam.

15. Caberia ainda citar a introdução de duas obrigações inovadoras, em tratados internacionais ou regionais de direitos humanos, no campo da proteção das vítimas de atos de discriminação:

a) a inversão do ônus da prova em alegados atos ou práticas de racismo, discriminação e intolerância (artigo 6.xiv do anteprojeto). No caso, trata-se de incorporação à futura Convenção de conceito presente na Diretiva sobre Raça (“Race Directive”) 43/2000 do Conselho da Europa, de 29/6/2000, que assim dispõe sobre a matéria: “The rules on the burden of proof must be adapted when there is a prima facie case of discrimination and, for the principle of equal treatment to be applied effectively, the burden of proof must shift back to the respondent when evidence of such discrimination is brought”; e
b) a promulgação de legislação que defina o crime de ódio como aquele praticado aquele praticado com ânimo ou motivação racial, étnico, religioso, de gênero, de orientação sexual, deficiência física e mental, e outras formas assemelhadas de discriminação, sancionando tal prática no campo penal e cível.

16. O capítulo IV trata dos mecanismos de monitoramento da futura Convenção. A eficácia do novo instrumento no combate ao racismo e a todas as formas de discriminação e intolerância depende da existência de um órgão de seguimento das obrigações assumidas pelos Estados e das funções que se encarregarão a esse órgão. A proposta do documento é que se atribua esse papel prioritariamente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e secundariamente, no que for pertinente, à Corte Interamericana de Direitos Humanos, seguindo-se a boa prática dos instrumentos interamericanos de proteção dos direitos humanos (sendo a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência a única exceção). Tal opção tem a vantagem de evitar a multiplicação de órgãos de monitoramento de tratados (prática condenável do sistema das Nações Unidas) e de adequar-se à realidade do sistema interamericano de direitos humanos no que se refere à recorrente carência de recursos financeiros e humanos.

17. As funções a serem desempenhadas pelo órgão principal de monitoramento da Convenção seriam:

a) a análise de informes periódicos elaborados pelos Estados ;
b) a elaboração de informes anuais e especiais sobre qualquer aspecto relacionado ao cumprimento pelo Estado do disposto na Convenção;
c) a análise e o tratamento de petições individuais com denúncias de violação da Convenção por um Estado Parte;
d) o recebimento e a análise de denúncias estatais, atendido o disposto no artigo 45 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos;
e) investigação in loco;
f) a adoção de medidas de alerta antecipado e procedimentos emergenciais; e
g) a resposta a consultas sobre questões relacionadas à efetiva aplicação da Convenção.

18. As disposições gerais que constam do anteprojeto são as que se encontram presentes em instrumentos regionais congêneres de proteção especial dos direitos humanos. É oportuno assinalar que, no que se refere à entrada em vigor da futura Convenção, dispõe-se que o instrumento entrará em vigor no trigésimo dia a partir do depósito do segundo instrumento de ratificação. Trata-se da mesma formulação presente na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, na Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, na Convenção de Belém do Pará e na Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadorea de Deficiência.

19. São essas as características centrais do Anteprojeto de Convenção que a presidência do Grupo de Trabalho tem a honra de submeter à consideração das delegações dos Estados-membros. A apresentação do anteprojeto - que preserva princípios, direitos e obrigações consagrados em instrumentos internacionais no campo dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, atualiza e amplia o escopo da proteção das vítimas de racismo, discriminação e intolerância no Hemisfério - representa contribuição importante para o avanço do tema no âmbito da OEA e o início do processo de negociação do futuro instrumento jurídico regional. A presidência deste Grupo de Trabalho está convencida de que sem uma proposta concreta de projeto de Convenção, seria grande o risco de alongarmos excessivamente o processo de reflexão sobre tema de tamanha relevância (algo já realizado ao longo dos últimos cinco anos e meio), esvaziando-se a iniciativa e frustrando os interessados diretos no êxito do processo: as vítimas de racismo, discriminação e intolerância nas Américas.