Discursos

CONSELHEIRO SILVIO JOSÉ ALBUQUERQUE E SILVA
PALAVRAS DE ABERTURA DO PRESIDENTE DO GRUPO DE TRABALHO, CONSELHEIRO SILVIO JOSÉ ALBUQUERQUE E SILVA, REPRESENTANTE ALTERNO DO BRASIL JUNTO À OEA

novembro 28, 2005 - Washington, DC


“Estamos sujeitos à prova do outro. Vemos, mas também somos vistos. Vivemos o constante encontro com o que não somos, ou seja, com o diferente. Descobrimos que só uma identidade morta é uma identidade fixa. Todos estamos sendo. Nada nos faz compreender - ou rechaçar – esta realidade melhor que o movimento que definirá cada vez mais a vida do século XXI: as migrações massivas do Sul ao Norte e do Oriente ao Ocidente. Nada colocará tão seriamente à prova nossa capacidade de dar e receber, nossos preconceitos e nossa generosidade também”.

(“Estamos sujetos a la prueba del otro. Vemos pero también somos vistos. Vivimos el constante encuentro con lo que no somos, es decir, con lo diferente. Descubrimos que sólo una identidad muerta es una identidad fija. Todos estamos siendo. Nada nos hace comprender – o rechazar – esta realidad mejor que el movimiento que definirá cada vez más la vida del siglo XXI: las migraciones masivas de Sur a Norte y de Este a Oeste. Nada pondrá tan seriamente a prueba nuestra capacidad de dar y recibir, nuestros prejuicios y nuestra generosidad también”)

Carlos Fuentes, En esto creo.


Um dos mais graves efeitos da globalização econômica - que ameaça a concretização dos avanços institucionais no campo da proteção dos direitos humanos no mundo – tem sido a excessiva exacerbação da discriminação e da intolerância. Com o aumento da mobilidade migratória das pessoas e com a acelerada circulação das imagens públicas das variadas espécies humanas, cada um dos povos e nações vê-se hoje compelido, muito mais do que no passado à troca com a alteridade. Abrigar “o outro” (o negro, o indígena, o migrante, o estrangeiro, o homossexual, o árabe, o muçulmano, o judeu, enfim, o diferente) sem a mediação de uma ética do acolhimento parece ameaçar, tanto em nosso Hemisfério quanto na Europa e em outros continentes, a consciência viciada do individualismo contemporâneo.


Nenhum regime ou construção política moderna encarna de forma mais perfeita o valor transcendental da ética do acolhimento do que o representado pelos direitos humanos. Os direitos humanos nasceram e se consolidaram na base de um princípio singelo. Há direitos que não são alienados ao poder, nem sequer são delegáveis. Há uma faixa que permanece fora de toda competência restritiva do Estado, com caracteres de independência e individualidade. Nesse território cessa a potestade absoluta da soberania, tornando ilegítima toda autoridade que se desvia de seus limites. Mesmo a maioria não pode ter a pretensão de dispor de um poder majestático para extinguir direitos de quaisquer indivíduos ou grupos sociais, seja a propósito de regulá-los ou aniquilá-los. Por tais motivos, um dado essencial da luta contra a discriminação e a intolerância é que esta representa uma forma específica e particularizada de luta em favor dos direitos humanos.


A sessão especial do Grupo de Trabalho Encarregado de Elaborar o Projeto de Convenção Interamericana contra o Racismo e Toda Forma de Discriminação e Intolerância que hoje se inicia tem suas raízes fincadas no campo fértil dos direitos humanos. Inspira-nos o sentido pragmático da preservação e do incentivo ao desenvolvimento dos direitos humanos, entendidos como o fim último do próprio ato de governar, sendo diversas outras das atividades do Estado uma conseqüência, muitas vezes dispensável.


Sabemos que não somos pioneiros nesse esforço internacional de construção de uma sólida estrutura jurídico-política de combate à discriminação e à intolerância. As Nações Unidas e a Europa (União Européia e Conselho da Europa) ousaram muito mais na tentativa de identificação e implementação de mecanismos eficazes de combate à discriminação. Infelizmente, tal estratégia internacional mostrou-se insuficiente para combater atos de racismo, discriminação e intolerância, que exibem uma capacidade extraordinariamente dinâmica de renovação, permitindo-lhes assumir novas formas de difusão e expressão política, social, cultural e lingüística. E não apenas a legislação internacional tem sido ineficiente, mas também as legislações e as políticas públicas domésticas.


No caso da OEA, é preciso reconhecer que jamais o tema do combate à discriminação e à intolerância ocupou lugar central nas preocupações e nas deliberações dos Estados membros desta Organização. Princípios gerais de igualdade e não-discriminação acham-se inseridos na Carta da OEA, na Declaração Americana sobre Direitos e Deveres do Homem e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Aprovaram-se convenções específicas sobre aspectos relacionados aos direitos da mulher e contra a discriminação aos portadores de deficiência. No entanto, nenhum instrumento jurídico de caráter obrigatório no campo do combate à discriminação racial e às demais formas discriminação e intolerância vigentes nas Américas logrou ser negociado e aprovado.


Temos motivos suficientes para acreditar que essa realidade está mudando.


A constituição deste Grupo de Trabalho, que tenho a honra de presidir, somente foi possível graças ao apoio da maioria absoluta das delegações dos Estados membros à iniciativa diplomática brasileira, lançada, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, desde o ano de 2000. Motivou-nos a convicção quanto à necessidade de elaboração de um instrumento interamericano avançado que ampliasse o tratamento dado ao tema pela Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Toda Forma de Discriminação Racial, de 1965, e se inspirasse nas propostas formuladas na Declaração e Plano de Ação da Conferência Regional de Santiago, preparatória à Conferência Mundial de Durban, na África do Sul.


Desde o início das atividades deste Grupo de Trabalho, que tenho a honra de presidir, o apoio das delegações da América do Sul, da América Central, do Caribe e da América do Norte tem sido fundamental para os excelentes resultados alcançados até o momento. Da mesma forma, sentimo-nos gratificados pelo apoio político prestado pelo Presidente do Conselho Permanente, Embaixador Izben Williams, pelo Secretário-Geral da OEA, José Miguel Insulza, e pelo Secretário-Geral Adjunto, Albert Ramdin. Finalmente, não poderia deixar de ressaltar o fato de que o reconhecimento feito pelos Chefes de Estado e de Governo das Américas na Declaração de Mar del Plata sobre a alta prioridade dos temas tratados por este Grupo de Trabalho representa a certeza de que estamos no caminho certo.

Cometeríamos um erro imperdoável caso pretendêssemos elaborar o texto do projeto da futura Convenção Interamericana sem a participação ativa e central da sociedade civil de nossos Estados. Nenhuma convenção regional de direitos humanos sobre tema de tamanha sensibilidade e importância contará com a legitimidade necessária caso venha a ser elaborada sem a participação ativa e o apoio de nossas sociedades, que se fazem representar nesta sessão especial por acadêmicos, parlamentares e integrantes do Poder Executivo e de organizações não-governamentais de diversos Estados do Hemisfério. Da mesma forma, reputo como valiosa a participação nesta sessão especial de representantes do Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, assim como de perita independente da ONU.

Senhor Secretário Geral, Senhores Delegados, ilustres convidados,

Ao encerrar estas palavras, gostaria de ressaltar que o que pretendemos aqui, nos próximos dois dias de sessão especial, não é divagar sobre teorias abstratas ou mergulhar em discussões infindáveis sobre conceitos sociológicos e filosóficos complexos. O que se busca é receber informações preciosas de convidados e palestrantes altamente qualificados em suas diversas áreas de atuação sobre diagnósticos e causas do racismo, da discriminação e da intolerância nas Américas e em outras partes do mundo, refletir sobre as virtudes e as fragilidades da atual arquitetura internacional de proteção dos seres humanos contra tais manifestações e, finalmente, identificar experiências de políticas públicas e construções jurídicas que possam vir a compor a proposta do futuro instrumento interamericano.



Ao final do dia de amanhã, teremos não apenas cumprido formalmente com o mandato e os propósitos delineados na resolução 2126, aprovada no XXXV período ordinário de sessões da Assembléia Geral da OEA. Teremos dado passo fundamental para a incorporação na agenda desta Organização, de forma permanente, do debate sobre políticas e instrumentos jurídicos de combate à discriminação de seres humanos nas Américas em função da raça, cor, sexo, gênero, idioma, religião, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento, deficiência, característica genética, orientação sexual, condição sorológica ou qualquer outra condição social.