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A CIDH culmina visita de trabalho ao Peru

7 de dezembro de 2020

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Washington, D.C. – A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) realizou uma visita de trabalho ao Peru entre os dias 29 de novembro e 2 de dezembro de 2020, com o objetivo de observar em terreno a situação dos direitos humanos no contexto dos protestos sociais relacionados com a recente crise política e institucional no país.

A delegação da CIDH esteve encabeçada pelo seu Presidente, Joel Hernández, e integrada pelo Comissionado Stuardo Ralón, Relator para o Peru, a Secretária Executiva Interina, María Claudia Pulido, o Relator Especial para a Liberdade de Expressão, Pedro Vaca, e integrantes da equipe técnica da Secretaria Executiva.

Neste marco, a Comissão Interamericana se reuniu com o Presidente da República, Francisco Sagasti, com a Chanceler, Elizabeth Astete e com o Ministro da Justiça, Eduardo Vega. Adicionalmente, a CIDH se reuniu com o Ministro do Interior, o Diretor Geral da Polícia, e com membros do Congresso da República, o Tribunal Constitucional, Procuradoria Geral da Nação e a Defensoria Pública. Igualmente, reuniu-se com vítimas de violações aos direitos humanos no contexto dos protestos, de quem recebeu depoimentos, assim como o fez com familiares, representantes de organizações da sociedade civil, pessoas defensoras de direitos humanos, jovens, estudantes, brigadistas voluntários, jornalistas e policiais.

A CIDH agradece ao governo peruano pelo seu convite, assim como por todas as facilidades brindadas para a realização desta visita de trabalho. Em especial, reconhece a expressão do compromisso de todas as autoridades do Estado com o respeito e a garantia dos direitos humanos, evidenciado por sua abertura ao monitoramento internacional, os diálogos francos e construtivos mantidos, o fornecimento aberto de informações e a boa vontade para estabelecer mecanismos de cooperação técnica.

A Comissão também agradece o apoio prestado pelo Representante do Escritório da Secretaria Geral da OEA para o Peru. Em especial, agradece a informação prestada por organizações da sociedade civil e destaca o apoio da Coordenadora Nacional de Direitos Humanos na realização desta visita. Muito especialmente, a Comissão agradece os esforços das e dos familiares de Jordan Inti Sotelo Camargo e Jack Bryan Pintado Sánchez, assim como de pessoas que foram feridas e seus familiares, de jornalistas, jovens que participaram na linha de frente dos protestos, brigadistas voluntários/as e defensores/as de direitos humanos para se reunir com a delegação e apresentar informação e prestar seus depoimentos.

A CIDH centrou sua missão na cidade de Lima e visitou as instalações da Delegacia Alfonso Ugarte. Além disso, o Relator Especial para a liberdade de Expressão fez um tour pelo centro da capital peruana para conhecer as rotas das manifestações e os locais aonde ocorreram as agressões mais graves aos manifestantes e jornalistas.

Durante a sua visita, a Comissão entrevistou mais de 120 pessoas e recebeu 83 depoimentos, a maioria deles brindados por pessoas que alegaram ter sido vítimas de violações de direitos humanos ou de outros prejuízos no contexto dos protestos. De acordo com a Defensoria Pública, pelo menos 47 pessoas teriam sido detidas entre os dias 10 e 14 de novembro de 2020. Neste contexto e até o momento atual, duas pessoas perderam a vida e pelo menos 200 pessoas ficaram feridas, incluindo 21 membros da Polícia Nacional do Peru (PNP). No entanto, a CIDH reconhece que o número de pessoas feridas poderia ser superior se fossem considerados os atendimentos prestados em clínicas particulares, cujos prontuários não foram acessados; bem como os diversos danos físicos que não foram tratados em centros de saúde.

Contexto relativo à crise institucional no Peru

A través de seus diferentes mecanismos, a CIDH tem acompanhado a situação de instabilidade política no Peru e seu impacto no respeito e garantia dos direitos humanos. Isto, em um contexto marcado por crescentes tensões entre os poderes Executivo e Legislativo - tensões que existem há anos - e também marcado pelos efeitos da pandemia da COVID-19, que levou ao decreto de um Estado de Emergência a nível nacional – o Decreto Supremo 006-2020-IN - vigente desde 16 de março de 2020.

Nesse contexto, a Comissão observou que o Congresso da República invocou em diversas ocasiões o artigo 113 da Constituição, que prevê a vacância presidencial sob a figura de “incapacidade moral permanente”. Em particular, apurou-se que em dezembro de 2017 e março de 2018, foram iniciados dois processos de vacância do então Presidente Pedro Paulo Kuczynski, que optou pela renúncia ao cargo em 21 de março de 2018; e que no que diz respeito ao seu sucessor, Martín Vizcarra, após as eleições legislativas realizadas em janeiro de 2020, e após a dissolução constitucional do corpo legislativo decretada pelo Executivo em 30 de setembro de 2019, o Congresso voltou a invocar a vacância presidencial em duas oportunidades, em menos de três meses. A primeira, em setembro de 2020, que foi rejeitada; e a segunda, aprovada por meio da resolução 001-2020-2021-CR de 9 de novembro de 2020, com 105 votos a favor, 19 contra e 4 abstenções.

Como resultado do exposto, o então presidente do Congresso, Manuel Merino, assumiu a presidência interina do Peru em 10 de novembro de 2020.

A esse respeito, a CIDH observa que o então Presidente Vizcarra foi submetido a dois processos de vacância sob a alegação de “incapacidade moral permanente” pela suposta comissão de atos de natureza penal que poderiam ser caracterizados como atos de corrupção. Segundo a informação disponível, tais atos vêm sendo investigados pelas autoridades competentes do Ministério Público. A Comissão alerta que o artigo 117 da Constituição define os casos específicos em que o Presidente da República pode ser acusado durante o seu mandato.

A Comissão, sem fazer uma interpretação ou qualificação constitucional do que aconteceu no Peru, observa que essa figura controvertida de vacância é assunto de um debate constitucional estendido, que inclui a sentença do Tribunal Constitucional de 2004 na qual incorporou-se a exigência de maioria qualificada de 87 votos para a sua aprovação. Além disso, a Comissão observa que esta figura mantém uma indefinição objetiva, o que permite um alto grau de discricionariedade que pode minar o princípio da institucionalidade democrática. A este respeito, a Comissão tomou conhecimento de que, por meio da sentença do dia 19 de novembro de 2020, o Tribunal Constitucional indicou que não lhe cabia emitir um pronunciamento neste assunto, uma vez que a primeira vacância não havia prosperado, sendo que foi essa moção de vacância que motivou a demanda constitucional.

A figura da vacância presidencial deve ser entendida no marco da proteção da institucionalidade democrática, e neste sentido resulta preocupante para a CIDH o seu reiterado uso, que afeta a governabilidade e implica em graves efeitos sobre a estabilidade democrática. Em especial, no atual contexto, caracterizado por impactos econômicos e sociais gerados pela pandemia da COVID-19, e pela proximidade das eleições gerais, convocadas para abril de 2021.

A CIDH lembra que a democracia constitucional tem como sua base os princípios essenciais de divisão e controle de poderes para a garantia do pleno exercício dos direitos fundamentais de todas as pessoas. Além disso, lembra que, no âmbito interamericano, o acesso e exercício do poder com sujeição ao Estado de Direito são elementos essenciais da democracia representativa. Neste marco, a Comissão sustentou que a destituição de um mandatário ou mandatária eleito/a democrática e constitucionalmente não deveria ser deixada ao critério político discricionário do Congresso ou do Parlamento; a destituição requer a verificação da existência de algum dos delitos ou infrações contemplados pela Constituição.

Da mesma forma, devem ser observadas as garantias mínimas do devido processo nas instâncias processuais de qualquer natureza para que as pessoas possam se defender adequadamente contra qualquer tipo de ato emanado do Estado que possa afetar seus direitos e obrigações. Da mesma forma, a CIDH lembra que o princípio da legalidade preside a atuação de todos os órgãos do Estado, em suas respectivas competências, especialmente no que se refere ao exercício do poder punitivo. Neste âmbito, a Corte Interamericana já enfatizou que em um sistema democrático é necessário tomar precauções extremas para que as consequências de procedimentos de natureza punitiva sejam adotados com estrito respeito aos direitos básicos das pessoas e somente após cuidadosa verificação da efetiva existência de conduta ilícita.

Os protestos sociais

Segundo informação pública, após a declaração de vacância presidencial realizada pelo Congresso da República, e a partir de 9 de novembro, uma série de protestos sociais foram realizados em todo o país, mesmo estando vigente o Estado de Emergência nacional decretado em 16 de março de 2020 em razão da pandemia da COVID-19 que restringiu os direitos constitucionais de reunião e livre circulação com o propósito de proteger a vida e a saúde da população.

A Comissão observou que estes protestos sociais contaram majoritariamente com a participação de jovens e estudantes que saíram às ruas para manifestar, de forma espontânea e multitudinária, seu descontentamento com a decisão do Congresso. De acordo com a informação pública disponível e fornecida por autoridades, as manifestações sociais que ocorreram em diversas cidades do país foram pacíficas, expressando os valores democráticos que a Comissão Interamericana reconhece e celebra. Entretanto, a Comissão observa com preocupação que em Lima, aonde segundo a informação recebida foram registrados casos isolados de violência, as manifestações foram especialmente reprimidas com o uso excessivo da força por parte da polícia. Neste contexto, dois jovens, Jordan Inti Sotelo Camargo e Jack Bryan Pintado Sánchez, perderam a vida, e ao menos 200 pessoas ficaram feridas, incluindo alguns membros da Polícia Nacional.

Neste contexto, a delegação foi informada de que a partir dos dias 10 e 11 de novembro de 2020 foram reportadas detenções de manifestantes e violência contra os mesmos. No dia 12 de novembro, dia em que foi convocada uma “Grande Marcha Cidadã” que reuniu mais de 20 mil pessoas na Praça San Martín de Lima, depoimentos recebidos indicam que nos locais de barreira policial ocorreram atos de violência como ofensas e empurrões entre manifestantes e policiais, arremesso de objetos na direção do cordão de isolamento policial por parte de manifestantes, assim como o uso de gás lacrimogêneo com fins de dispersão por parte de efetivos policiais. Segundo depoimentos recebidos pela CIDH e de acordo com o que foi registrado pela Defensoria Pública, à medida que os manifestantes avançaram em direção aos pontos de bloqueio e que aumentaram as tensões entre a polícia e os manifestantes, a polícia intensificou o uso de gás lacrimogêneo e começou a usar munições contra pessoas manifestantes.

Especialmente no dia 14 de novembro, uma segunda grande marcha foi convocada por diversos coletivos sociais em mais de 12 localidades da capital peruana. Segundo foi informado à Comissão, a marcha foi caracterizada por altos níveis de violência e repressão, e terminou com pelo menos 107 pessoas feridas por lesões de projétil, inalação de gases tóxicos e politraumatismos, segundo foi reportado pelo Ministério da Saúde; e com o falecimento de dois jovens, Jordan Inti Sotelo Camargo e Jack Bryan Pintado Sánchez.

De acordo com a informação proporcionada pela Defensoria Pública, na noite de 14 para 15 de novembro, foi reportado o desaparecimento de pelo menos 60 pessoas. De acordo com os estândares interamericanos de direitos humanos, nos casos de denúncias de desaparição, os Estados têm a obrigação de realizar uma busca sob a presunção de que a pessoa desaparecida está viva, e de realizar todos os esforços possíveis para determinar rapidamente o seu paradeiro. O paradeiro de todas as pessoas foi posteriormente confirmado, inclusive o de Luis Fernando Aráujo Enriquez, que afirmou ter ficado detido contra a sua vontade durante três dias e em um lugar não determinado por parte de supostos agentes policiais à paisana.

Como consequência deste violento dia de protestos, em 15 de novembro, o Presidente interino renunciou publicamente. Após a confirmação de uma nova Junta Diretiva no Congresso, Francisco Sagasti passou a ocupar o cargo de Presidente interino da República, no dia 17 de novembro.

Com relação ao desenrolar das manifestações, a Comissão foi informada sobre o material gráfico publicado no dia 13 de novembro com mensagens parabenizando efetivos policiais pela sua ação nas manifestações contra a declaração de vacância presidencial. Segundo foi informado à CIDH, essas publicações foram realizadas por altos funcionários do governo, quando os diversos atos de uso excessivo da força já eram de conhecimento público. A respeito disso, a CIDH reitera o dever que todos os funcionários do Estado têm de prevenir violações de direitos humanos e lembra que os discursos que minimizam a violência podem passar a mensagem de tolerância da mesma e gerar um clima permissivo de seu uso excessivo.

Por outro lado, a CIDH também obteve informação sobre atos relacionados com grupos de pessoas que utilizaram a violência, por meio de insultos, violento arremesso de pedras e outros objetos, ou uso de armas artesanais contra policiais. De acordo com a informação fornecida pela Polícia Nacional, como consequência desses atos violentos, pelo menos 21 policiais ficaram feridos, incluindo 11 suboficiais que sofreram contusões causadas pelos objetos arremessados e queimaduras enquanto faziam a contenção dos atos de violência dos manifestantes. Segundo informações recebidas das autoridades da Polícia Nacional, foi identificada a presença de “grupos violentos infiltrados”, causando a destruição de equipamentos urbanos e bens públicos e privados, incluindo postes de iluminação, monumentos históricos, estações de transporte público metropolitano, estabelecimentos financeiros, apoiadores locais e lojas de fast food, além de danos materiais em 13 viaturas policiais e duas motos.

A esse respeito, a Comissão e a sua Relatoria Especial condenam veementemente todo ato de violência, independentemente de sua origem, e recordam que o protesto social é legítimo desde que ocorra de maneira pacífica. Nesse sentido, lembram que o adjetivo “pacífico” deve ser entendido no sentido de que as pessoas que praticam atos de violência em manifestações podem ter seus direitos à manifestação restringidos, temporária e individualmente. Dada a obrigação do Estado de proteger os direitos humanos em contextos de manifestação, incluídos os direitos à vida e à integridade física dos manifestantes, o Estado pode restringir a participação de pessoas que cometam atos de violência ou portem armas em manifestações e protestos públicos. A CIDH reconhece que os Estados têm o dever de adotar as medidas necessárias para evitar atos de violência, garantir a segurança das pessoas - inclusive dos manifestantes - e manter a ordem pública.

No entanto, os Estados devem agir com base na legalidade dos protestos ou manifestações públicas, entendendo que o fato de alguns grupos ou indivíduos exercerem violência em uma manifestação não torna violenta por si só a manifestação como um todo, nem autoriza as forças de segurança a dispersar a manifestação com o uso da força ou a realizar detenções massivas. A CIDH lembra que as ações da força pública para coibir atos de violência devem ser realizadas respeitando os protocolos de necessidade, proporcionalidade e legalidade, e respeitando os estândares interamericanos nesse âmbito.

A Comissão apontou que o carácter pacífico e sem armas previsto nos instrumentos interamericanos como requisito do exercício do direito de reunião não permite que se declare o caráter não-pacífico de uma manifestação com base nas ações de algumas pessoas. Portanto, a CIDH lembra que quando alguns indivíduos cometem atos de violência no contexto de uma manifestação, esses atos devem ser individualizados sem que os demais manifestantes tenham seu direito de reunião pacífica prejudicado, e consequentemente nenhuma reunião deve ser considerada desprotegida.

A CIDH observou que as pessoas manifestantes eram majoritariamente jovens e estudantes e destacou que em geral as convocações foram realizadas de maneira espontânea, a partir de diversas lideranças e com um tom pacífico, com reivindicações feitas através de cartazes, bandeiras, canções e expressões artísticas.

A Comissão lembra que o protesto social é um elemento essencial para a existência e consolidação das sociedades democráticas e que é protegido por uma ampla gama de direitos e liberdades no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. A própria Constituição Política do Peru inclui no parágrafo 12 de seu artigo 2 o direito de reunião pacífica sem armas. Deve ser ressaltado que todas as autoridades entrevistadas pela delegação concordaram ao se referir às manifestações como um livre exercício de um direito constitucional.

Conforme indicado pela CIDH, os manifestantes têm a liberdade de escolher como realizar uma manifestação pacífica, aonde realizá-la, e qual mensagem transmitir, e os Estados têm a obrigação de administrar o conflito social na perspectiva do diálogo, e o dever de adotar as medidas necessárias para evitar atos de violência, garantir a segurança das pessoas e a ordem pública. A Comissão lembra que o protesto está intimamente ligado à promoção e defesa da democracia.

Resposta estatal

Uso da força

No marco da visita de trabalho, o Estado informou que as ações da Polícia Nacional Peruana e o uso da força nas operações de manutenção e restauração da ordem pública respeitaram as atribuições conferidas no marco regulatório nacional, dentre as quais se destacam o Decreto Legislativo n 1267, Lei da Polícia Nacional do Peru; o Decreto Legislativo n 1186, que regulamenta o uso da força pela Polícia Nacional do Peru; bem como o Manual de Direitos Humanos aplicado à função policial e a Portaria DPNP n 17-03-2015-DIRGEN-PNP/EMG-PNP-B que estabelece as normas e procedimentos para o uso de armas não letais e armas letais por policiais em intervenções.

A CIDH adverte que, mesmo que o Decreto Legislativo n 1186 regulamenta o uso da força por parte da Polícia Nacional, por meio da aprovação da Lei n 31012 (conhecida como Lei de Proteção Policial), em 20 de março de 2020, o referido Decreto teve seu artigo 4 reformado para derrogar o princípio de proporcionalidade da normativa nacional. Segundo a informação disponível, isso poderia ter como finalidade o estabelecimento de uma presunção a favor dos policiais sobre a razoabilidade do uso da força, o que poderia também favorecer a sua impunidade. A CIDH se encontra seriamente preocupada com a referida derrogação, portanto faz um apelo ao Estado peruano para que revise a Lei n 31012, com o objetivo de fazer os ajustes necessários para que a mesma respeite os estândares interamericanos no que se refere ao cumprimento das obrigações que derivam do artigo 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Por outro lado, de acordo com a informação fornecida à CIDH, a Polícia Nacional formulou dois planos operacionais para enfrentar os protestos sociais em Lima, em coordenação com a Defensoria Pública e o Ministério Público. Conforme relatado pelas autoridades do PNP à Comissão, uma estratégia desenhada sob os princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade foi utilizada na ação policial para o uso da força de forma progressiva e diferenciada, valendo-se dos meios à disposição da polícia, como cassetetes, escudos, capacetes, granadas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, de forma racional e de acordo com a gravidade da violência.

Com base nas informações coletadas e nos numerosos depoimentos recebidos durante a sua visita, a CIDH observa com preocupação que a resposta do Estado às manifestações foi caracterizada pela repressão por meio do uso excessivo e desproporcional da força. Por exemplo, depoimentos revelam que agentes policiais atiraram gases lacrimogêneos desde telhados e terraços. Registrou-se também que policiais entraram de moto abruptamente entre pessoas e grupos, agredindo manifestantes fisicamente, com o objetivo de cercá-los para posteriormente detê-los. Adicionalmente, diversos depoimentos denunciaram a participação de agentes policiais à paisana entre os manifestantes, que segundo os relatos seriam parte do chamado “Grupo Terna”. Igualmente, a Comissão recebeu de maneira consistente relatos sobre helicópteros fazendo voos rasantes nos locais das manifestações, gerando um clima de intimidação e medo entre os manifestantes.

Desde o início dos protestos, a Comissão foi informada sobre o uso indiscriminado e contínuo de gases lacrimogêneos e asfixiantes, e dos efeitos que isto teve na dinâmica dos protestos e na saúde e integridade física e mental das pessoas que neles participavam.

Segundo depoimentos recebidos, se bem esses gases foram inicialmente utilizados com fins de dispersão, rapidamente seu uso tornou-se indiscriminado, ininterrupto e em alguns casos diretamente direcionado aos corpos de manifestantes e aos espaços usados como refúgio de manifestantes. De acordo com esses relatos, os gases atingiram moradias da região, afetando pessoas que não estavam participando da manifestação, inclusive pessoas idosas e crianças. Além disso, o uso constante de gases propiciou um clima de confusão e pânico, chegando a gerar um efeito de debandada humana, colocando as pessoas que participavam nos protestos sob grave risco. De acordo com depoimentos de pessoas que foram feridas, policiais teriam usado esses gases diretamente contra os manifestantes, enquanto muitas dessas pessoas foram feridas pelo impacto de cartuchos que caíam constantemente sobre eles. Da mesma forma, a delegação foi informada de que o uso de gás lacrimogêneo foi realizado inclusive contra brigadistas voluntários, no momento em que intervieram em socorro às pessoas feridas.

Além disso, a Comissão registrou a importante presença da imprense cobrindo os atos durante os dias de manifestação. A esse respeito, recebeu informação sobre pelo menos 40 casos de agressões a jornalistas, sendo de especial gravidade os casos do fotógrafo do jornal O Comércio, Alonso Chero e de Alonso Balbuena, da mídia Ojo [olho] Público. No primeiro caso, segundo foi informado à Comissão, Alonso Chero foi atingidos nas costas e, por meio de uma intervenção cirúrgica, um projétil de vidro redondo (como uma bola de gude) foi removido de seu corpo. No caso de Alonso Balbuena, de acordo com a informação recebida pela CIDH, agentes da polícia teriam atirado um cartucho de gás lacrimogêneo diretamente em sua perna desde uma curta distância, destruindo parte considerável de sua massa muscular.

A Comissão observa com preocupação os numerosos depoimentos demonstrando que, após as manifestações e conforme foram passando os dias, a resposta estatal às mesmas teria se tornado mais violenta, mediante o uso de armas de baixa letalidade, como bombas lacrimogêneas, que teriam sido atiradas em direção às cabeças, tórax ou extremidades inferiores das pessoas manifestantes. A CIDH recebeu informação e depoimentos de pessoas que ficaram gravemente feridas ao terem sido atingidas nos joelhos e nas pernas enquanto se afastavam dos enfrentamentos entre os manifestantes e as forças da ordem. Além disso, depoimentos recebidos pela CIDH indicam que agentes da Polícia Nacional teriam disparado desde uma curta distância ou à queima-roupa contra pessoas que não representavam ameaça alguma, como brigadistas voluntários que prestavam socorro às pessoas feridas, ou manifestantes rendidos, e jornalistas que faziam o seu trabalho, legítimo e relevante para a garantia de direitos, de cobertura durante os protestos.

Neste sentido, a Comissão soube que ao menos 7 pessoas sofreram lesões oculares de diversa gravidade. Além disso, segundo a informação recebida pela Comissão durante as suas reuniões com representantes da sociedade civil, 77% das pessoas atendidas nos hospitais tinham feridas ou contusões na parte superior do corpo.

A CIDH recebeu muitos depoimentos relatando o uso de balas de borracha contra manifestantes e recebeu também informações relacionadas com feridas provocadas pelo uso de balas de metal. Por exemplo, nos casos reportados pela Defensoria Pública, prontuários médicos mostram que pelo menos duas pessoas foram atingidas por balas de metal, uma no abdômen e uma na coluna vertebral. Da mesma forma, os familiares dos jovens Jordan Inti Sotelo Camargo e Jack Bryan Pintado Sánchez, entrevistados pela Comissão, indicaram – como consta nos prontuários médicos e perícias – que os jovens morreram por terem sido atingidos por um projétil de chumbo e 10 projéteis de chumbo, respectivamente. A esse respeito, a Comissão solicita às autoridades competentes que investiguem devidamente a origem e o uso de balas de metal no âmbito dos protestos sociais, com base nas normas interamericanas na matéria.

A Comissão lembra que, dadas as consequências irreversíveis que podem advir do uso da força, esta deve ser empregada como último recurso e deve ser qualitativamente e quantitativamente limitada, utilizada apenas para prevenir um evento de maior gravidade do que aquele provocado pela reação do Estado. Dentro desse marco de excepcionalidade, a CIDH recorda que para que o uso da força seja justificado, devem ser cumpridos os princípios de legalidade, necessidade absoluta e proporcionalidade do uso da força.

A CIDH enfatiza também que os Estados devem implementar mecanismos para proibir de maneira efetiva o uso da força letal como recurso nas manifestações públicas; e que a proibição de portar armas de fogo e munição de chumbo por parte de funcionários que podem vir a entrar em contato com manifestantes é a melhor medida de prevenção da violência letal e da ocorrência de mortes nesses contextos. Assim, as armas de fogo e as respectivas munições devem estar excluídas das operações de controle das manifestações sociais.

Da mesma forma, a Comissão alertou para o frequente efeito indiscriminado de armas de baixa letalidade no contexto de protestos sociais, gás lacrimogêneo e dispositivos de disparos de repetição que, em alguns casos, são utilizados para disparar balas de borracha. Nesse sentido, a CIDH afirmou que o uso deste tipo de armas deve ser desaconselhado, devido à impossibilidade de controlar a direção de seu impacto. Além disso, se houver espingardas dentro do armamento legal e disponíveis nas instituições de segurança que podem, alternativamente, ser carregadas com chumbo, borracha ou outros cartuchos de munição, os controles necessários para excluir armas de fogo também se estendem à munição.

Em relação às diversas violações de direitos humanos registradas no âmbito de sua visita, a CIDH observou com preocupação os relatos relativos à prisão de manifestantes; a implantação de técnicas intimidantes de cerco policial contra manifestantes; ativação amedrontadora de armamentos por parte de policiais uniformizados; utilização indiscriminada de gases asfixiantes; uso de armas de chumbo; disparos e detenções realizadas por pessoas apontadas como integrantes do Grupo Terna da Polícia Nacional; agressões contra jornalistas que cobriam os protestos, contra funcionários/as da Defensoria Pública que cumpriam as suas funções e contra brigadistas voluntários. Igualmente, foram registradas detenções, ameaças e imposição de obstáculos ao trabalho de defensores/as de direitos humanos, assim como graves atos de violência contra jornalistas.

Com relação a isso, a CIDH recebeu com preocupação informação sobre atos de intimidação, agressões verbais e empurrões cometidos por agentes da Polícia Nacional contra funcionários/as da Defensoria Pública indetificados/as, com o objetivo de impedir o cumprimento de suas funções. Segundo informou a Defensoria, pelo menos 19 funcionárias e funcionários da Defensoria sofreram agressões, em atos ocorridos desde o primeiro dia de manifestações, perpetrados inclusive por policiais de alto escalão. Em diversas ocasiões, funcionários/as da Defensoria foram obrigados a abandonar o local em consequência dos ataques. Da mesma forma, a delegação foi informada de atos de perseguição e intimidação de brigadistas voluntários durante os protestos.

Além disso, a Comissão recebeu informações sobre abordagens e detenções arbitrárias durante os protestos e se encontra preocupada com as informações que indicam a realização de detenções irregulares por agentes do Grupo Terna, à paisana, dado que seu mandato está limitado a casos de flagrância e não contempla intervenções para controle da ordem pública. A esse respeito, a Comissão teve conhecimento e celebra o anúncio do Ministério do Interior, realizado no dia 24 de novembro de 2020, assegurando que não seria permitida a participação de agentes do Grupo Terna em manifestações.

A Comissão observou que, embora o procedimento de abordagem se baseia em um controle de identidade que pode eventualmente levar a sanções administrativas, as pessoas que foram abordadas durante as manifestações foram detidas em instalações policiais. A Comissão observa com especial preocupação os relatos de abordagens realizadas com base no marco normativo do Estado de Emergência adotado para conter os efeitos da pandemia da COVID-19, enquanto pessoas manifestantes foram abordadas por descumprimento de tais disposições, como, por exemplo, ter descumprido o distanciamento social. Também foi recebida informação sobre diversos obstáculos ou impedimentos encontrados por advogados e defensores para acessar as delegacias nos primeiros dias de manifestações, assim como atrasos ou ausência de promotores.

A esse respeito, a CIDH lembra que as medidas adotadas para conter a pandemia devem estar centradas no pleno respeito dos direitos humanos, e em especial reitera que os Estados devem garantir que não sejam realizadas detenções arbitrárias durante a vigência de estados de emergência ou restrições à circulação de pessoas, e que toda detenção deve contar com o devido controle judicial, de acordo com os estândares interamericanos nesse âmbito.

Além disso, a Comissão destaca que os Estados têm a obrigação de informar imediatamente à pessoa detida, seus familiares e representantes, sobre os motivos e razões da detenção. Também é seu dever informar o local de privação de liberdade. Este dever constituiu um mecanismo para evitar detenções arbitrárias ou ilegais desde o momento da privação da liberdade e, ao mesmo tempo, garantir o direito de defesa. Da mesma forma, o artigo 7 da Convenção exige a rápida e efetiva supervisão judicial das instâncias da detenção a fim de proteger a integridade das pessoas detidas.

Em especial, a CIDH tomou conhecimento de casos que afetaram particularmente os direitos de algumas mulheres manifestantes, inclusive o caso de uma menina de 14 anos. Ela afirmou ter sofrido agressões físicas na cabeça e nas costas, puxões de cabelo, insultos e ameaças no momento em que foi abordada, e posteriormente não ter-lhe sido brindado o trato adequado em sua qualidade de menor de idade na delegacia. Segundo o depoimento da menina, embora sua mãe estivesse na delegacia, ela não foi liberada imediatamente. Da mesma forma, a Comissão ouviu com preocupação o depoimento de sua irmã, que, além de ter sofrido uma abordagem violenta, foi detida em dependências policiais e em condições que afetaram a sua dignidade pessoal. A Comissão comprovou que o local aonde ela foi detida era escuro, sem ventilação e com deploráveis condições higiênicas, inclusive com a presença de urina, fezes e ratos. Sob custódia policial, ela denunciou ter sido vítima de diversas formas de violência sexual, incluindo provocações e humilhações por sua condição de mulher, além de insultos, olhares e comentários ameaçadores de conotação sexual. Ela também alegou ter sido submetida à nudez forçada e a uma inspeção vaginal aparentemente abusiva.

Da mesma forma, a CIDH foi informada do caso de outra mulher que, após ter sido detida e estando sob custódia policial foi alvo de violência sexual, incluindo nudez forçada e apalpamentos, e de tratos humilhantes e degradantes com evidentes conotações racistas, tanto por sua condição de mulher quanto por sua origem andina. Em todos esses casos, foi possível comprovar as afetações à saúde física e mental dessas mulheres e de suas famílias, particularmente refletidos em sentimentos de medo e desconfiança em relação às autoridades.

A esse respeito, a Comissão recorda aos Estados que toda pessoa privada de liberdade sob as suas jurisdições tem direitos de receber um trato humano, com irrestrito respeito à sua dignidade inerente, aos seus direitos fundamentais, em especial seus direitos à vida e à integridade física, às suas garantias fundamentais, como o são o acesso às garantias judiciais indispensáveis para proteger direitos e liberdades. Além disso, a Comissão lembra que o Estado tem a obrigação de velar para que seus agentes e instituições respeitem a estrita proibição da violência e discriminação contra mulheres e meninas. Em contextos de manifestações, o Sistema Interamericano se pronunciou a respeito da violência sexual contra mulheres, e sustentou que a mesma é utilizada por agentes estatais como uma ferramenta de controle, domínio e imposição de poder que busca transmitir a sua mensagem de repressão e desaprovação das manifestações. Tais atos podem representar uma forma de violência de gênero contra as mulheres, constituir uma forma de discriminação contra elas e poderiam ser além disso considerados atos de tortura.

Adicionalmente, a CIDH recebeu informações e múltiplos depoimentos que explicitam os graves efeitos na saúde mental e no bem-estar emocional de jovens, estudantes e àqueles que denunciaram violações de seus direitos humanos, como consequência dos atos de violência, intimidação e repressão nos protestos sociais. A este respeito, a CIDH enfatiza que os efeitos produzidos a curto e longo prazo por situações ameaçadoras para a vida e integridade física envolvem experiências traumáticas que habitualmente se manifestam através de intenso estresse, sofrimento extremo, ansiedade, humilhação e mudança radical na vida das vítimas sobreviventes e seus familiares. Isto também leva a um impacto social e comunitário pelo caráter coletivo e estendido das violações aos direitos humanos e os traumas gerados. Nesse sentido, a CIDH avalia positivamente que algumas universidades tenham oferecido serviços de atenção psicológica aos estudantes. Sem desconsiderar essas ações, a CIDH faz um apelo ao Estado para que adote as medidas necessárias para a implementação de mecanismos de atenção à saúde psicológica das pessoas afetadas, de forma multidisciplinar e com perspectivas especializadas e diferenciadas.

Investigações

Durante a sua visita ao país, a Comissão recebeu informação sobre o início de diversas investigações e diligências por parte do Ministério Público pelos fatos ocorridos no marco dos protestos.

De acordo com o informado à CIDH, durante as manifestações, muitos promotores estiveram presentes entre os dias 14 e 19 de novembro, realizando 132 visitas em 89 dependências policiais e em 43 hospitais, clínicas e policlínicas. Da mesma forma, a Comissão foi informada de que, no marco das investigações, a Promotoria recolheu material gráfico; prontuários médicos das pessoas feridas e falecidas; planos de operações da polícia; cadernos com registros de armas; assim como a lista de agentes que interviram nas manifestações. Da mesma forma, o Ministério Público confiscou espingardas, munições e outros armamentos e está realizando perícias nos armamentos da polícia. Além disso, o Ministério Público informou à CIDH que se encontra atualmente no processo de receber declarações de efetivos de polícia e pessoas afetadas durante as manifestações, e que implementou o Sistema de Coleta de Evidências (SiRE – pela sigla em espanhol) para que os cidadãos e as cidadãs possam apresentar fotos, vídeos, e informação que ajude nos esclarecimentos dos fatos. A Procuradora Geral da Nação informou à Comissão sobre os desafios enfrentados pelas suas equipes diante de uma investigação desta envergadura, incluindo as limitações do teletrabalho no contexto das medidas adotadas para conter a pandemia da COVID-19, assim como a falta de recursos e de espaço físico para o recebimento de depoimentos. Além disso, foi informado à CIDH sobre a importância de contar com uma polícia de investigação própria e de reforçar a perspectiva de direitos humanos nos funcionários e nas funcionárias.

Por sua vez, o Ministério da Justiça informou à CIDH que entre os dias 12 e 15 de novembro de 2020, equipes de defensores públicos estiveram em delegacias e hospitais, realizando 8 atendimentos a pessoas detidas, sendo que uma aceitou o patrocínio, em Lima. Além disso, foram realizados 15 atendimentos em hospitais no dia 15 de novembro de 2020, incluindo um patrocínio de uma pessoas que sofreu lesões graves. Igualmente, foi colocada à disposição uma linha telefônica, disponível 24 horas, para que as pessoas que não estavam localizando seus familiares pudessem entrar em contato com um advogado. No que se refere à situação das pessoas desaparecidas, a Comissão foi informada de que diversos processos foram instaurados perante o Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses e a Perícia do Ministério Público. Entre eles estava o pedido de geolocalização dos telefones celulares de pessoas não localizadas, o que envolveu fazer contato com seus familiares. A Procuradora Geral da Nação também ordenou a formação de equipes de promotores para visitar as delegacias e quartéis-generais de polícia, a fim de apurar se as pessoas desaparecidas se encontravam lá detidas.

Quanto aos eventos relacionados com violações de direitos humanos ocorridas no contexto dos protestos sociais e de acordo com informação pública, no dia 16 de novembro de 2020 a Procuradora Geral da Nação anunciou que dada a gravidade e o contexto dos atos, abriu-se uma investigação preliminar contra aqueles que resultem responsáveis pelo delito de homicídio doloso agravado no caso dos jovens Inti Sotelo e Jack Pintado, e contra os que resultem responsáveis pelo delito de desaparição forçada. Adicionalmente, a Comissão reconheceu as declarações do Ministro do Interior sobre o compromisso da instituição de apoiar às vítimas; garantir uma investigação transparente; e garantir a segurança de todos os envolvidos nas investigações, incluindo os familiares dos jovens falecidos, após a denúncia de supostos atos hostis contra eles.

A respeito das ações da polícia durante as manifestações, a Comissão foi informada de que existem investigações administrativas dentro da Polícia Nacional do Peru com o objetivo de identificar responsabilidades disciplinares que possam surgir. Do mesmo modo, a Comissão tomou nota do que foi anunciado pelo Presidente da República em relação à Polícia Nacional, incluindo mudanças no alto comando desta instituição, bem como a instalação de uma Comissão para modernizar e reforçar as capacidades da Polícia no âmbito da defesa de direitos do cidadão, da ordem interna e da segurança cidadã.

No que se refere a eventuais responsabilidades de altas autoridades, segundo tornou-se público em 16 de novembro de 2020, abriu-se uma investigação contra aqueles que ocupavam os cargos de presidente da República, Primeiro Ministro e Ministro do Interior durante as manifestações, pela suposta comissão dos crimes de abuso de autoridade, homicídio doloso pela morte dos dois jovens, lesões graves e leves e desaparição forçada, os quais teriam sido cometidos em um contexto de violação aos direitos humanos.
A esse respeito, a Comissão insta o Estado a cumprir seu dever de devida diligência em matéria de investigação, identificação dos responsáveis, punição e reparação por todos os atos ocorridos no âmbito dos protestos, de acordo com os estândares interamericanos na matéria.

Reparações

De acordo com a informação pública, em seu ato de posse, o presidente Sagasti pediu desculpas públicas em nome do Estado pela morte de Inti Sotelo e Bryan Pintado no marco dos protestos, desculpas estendidas também aos manifestantes que ficaram feridos, aos seus familiares, assim como “a todos os jovens que marcharam em defesa da democracia”. Além disso, a Comissão tomou nota de que tanto o Presidente como a Primeira Ministra se reuniram com familiares das vítimas mortais dos protestos e com jovens que ficaram feridos neste contexto e seus familiares. A Comissão celebra esses pedidos de desculpas e avalia positivamente o compromisso assumido pelo atual governo de garantir que acontecimentos não fiquem impunes e de facilitar que o trabalho do Ministério Público possa ser realizado com independência, no exercício de suas funções.

De acordo com o que foi informado à Comissão, no dia 22 de novembro de 2020, a Presidente do Conselho de Ministros informou publicamente sobre a conformação de um grupo interministerial, com a participação dos familiares dos jovens falecidos e da sociedade civil representada pela Coordenadora Nacional de Direitos Humanos, para estabelecer responsabilidades, adotar medidas concretas para que tais atos não se repitam, e conformar um sistema de proteção para as famílias das vítimas e os brigadistas voluntários afetados. Sobre essa questão, a CIDH urge o Estado a tomar as medidas necessárias para formalizar este anúncio por meio de um respaldo legal que defina seu alcance, responsabilidades, coordenação e recursos destinados.

A CIDH lembra que, no marco do dever do Estado de reparar integralmente as vítimas de violações de direitos humanos, a implementação de reparações deve ser rápida, portanto a garantia das mesmas deve ocorrer no menor tempo possível após perpetradas as referidas violações. Além disso, as reparações devem se adequar às particularidades das violações aos direitos humanos em questão e ser proporcionais à gravidade dos danos que são objeto de reparação. Além disso, todo o processo de reparação de violações aos direitos humanos deve garantir a plena participação das vítimas, outorgando-lhes um papel de protagonistas, de acordo com as suas perspectivas e necessidades concretas.

A Comissão Interamericana, no âmbito de seu mandato de prestar cooperação técnica aos Estados, expressou sua plena disposição de prestar assistência aos Estados e às vítimas de direitos humanos, com relação à implementação de medidas integrais de reparação, visando que a sua implementação tenha um efeito transformador nas causas subjacentes às violações dos direitos humanos, e visando gerar um efeito simbólico que contribua para a satisfação e não repetição dos fatos. A Comissão valoriza as expressões de interesse das mais altas autoridades do Estado de estabelecer a cooperação técnica oferecida.

Com base no que foi colocado, a CIDH formula as seguintes recomendações:

1. Adotar medidas de investigação diligentes com o fim de identificar, processar e punir os responsáveis, tanto penais como administrativos, por todos os atos de violência cometidos no âmbito dos recentes protestos;
2. Adotar as medidas necessárias para garantir o fim do uso excessivo da força por parte da Polícia Nacional do Peru no contexto das manifestações. A CIDH recorda que a ação das forças de segurança do Estado na manutenção da ordem pública deve estar em estrito apego aos estândares internacionais de direitos humanos nesse âmbito. Para isso, devem ser realizadas reformas para ajustar o marco normativo policial aos estândares e normas interamericanos, assim como seus protocolos de ação;
3. Assegurar que as forças de segurança que intervenham para proteger e controlar protestos e manifestações tenham como prioridade a defesa da vida e da integridade das pessoas, se abstendo de deter manifestantes de forma arbitrária ou de violar seus direitos de qualquer outra forma, de acordo com os protocolos vigentes. Para isso, devem ser realizadas capacitações frequentes sofre direitos humanos para as forças de segurança. Além disso, considerando a posição especial de garante das pessoas sob a sua custodia, o Estado deve garantir que as condições de detenção em delegacias sejam compatíveis com o respeito à dignidade, saúde e higiene das pessoas privadas de liberdade;
4. Adotar as medidas necessárias para estabelecer controles independentes e especializados relacionados com o tipo de armamento e munições destinados a proteger e controlar as manifestações, com o objetivo de garantir a sua plena conformidade com os protocolos vigentes e com os estândares internacionais;
5. Adotar as medidas necessárias para implementar, de maneira efetiva e com respaldo legal, o anunciado mecanismo interministerial para a adoção de medidas de não repetição, proteção e reparação das violações de direitos das pessoas que faleceram, das que ficaram feridas e de seus familiares no marco dos protestos. Este mecanismo deve contar com competências claramente definidas; com recursos para seu adequado funcionamento; com instâncias de coordenação e acompanhamento; e deve integrar a participação de representantes de pessoas feridas e falecidas durante os protestos e com a participação de representantes da sociedade civil;
6. Fortalecer as capacidades do Ministério Público em matéria de recursos humanos, financeiros e logísticos que permitam levar a cabo, de maneira diligente e efetiva, as investigações e diligências relacionadas com os fatos ocorridos no marco dos protestos desde uma perspectiva de direitos humanos. Em especial, reforçar a sua capacidade investigativa e a formação de uma equipe técnica de investigação policial;
7. Oferecer garantias efetivas para proteger às pessoas que denunciaram diversas afetações no marco dos protestos, assim como às pessoas que prestaram depoimentos perante a CIDH;
8. Garantir cuidados de saúde, tanto física como mental, a todas as pessoas feridas ou afetadas no contexto dos protestos e, em particular, às pessoas portadoras de alguma deficiência;
9. A Comissão incentiva as autoridades a promoverem um diálogo construtivo entre os diferentes poderes do Estado, de acordo com os valores democráticos, com o objetivo de fortalecer o Estado de Direito;
10. Contar com a assistência técnica da CIDH para dar seguimento às presentes recomendações mediante um mecanismo conjunto adequado para tal fim.

A CIDH é um órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujo mandato surge a partir da Carta da OEA e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Comissão Interamericana tem como mandato promover a observância e defesa dos direitos humanos na região e atua como órgão consultivo da OEA na temática. A CIDH é composta por sete membros independentes, que são eleitos pela Assembleia Geral da OEA a título pessoal, sem representarem seus países de origem ou de residência.

No. 290/20