Liberdade de Expressão

2012 - 2

 Mecanismos Internacionais para a Promoção da Liberdade de Expressão

DECLARAÇÃO CONJUNTA SOBRE DELITOS CONTRA A LIBERDADE DE EXPRESSÃO

O Relator Especial das Nações Unidas (ONU) sobre a Liberdade de Opinião e Expressão, a Representante da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) para a Liberdade dos Meios de Comunicação, a Relatora Especial da Organização dos Estados Americanos (OEA) para a Liberdade de Expressão e a Relatora Especial da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos (CADHP) para Liberdade de Expressão e Acesso à Informação,

Tendo-se reunido em Paris em 13 de setembro de 2011 e em Túnis em 4 de maio de 2012, após terem discutido os presentes temas conjuntamente com a colaboração da organização ARTIGO 19, Campanha Mundial pela Liberdade de Expressão (ARTICLE 19, Global Campaign for Free Expression) e do Centro para o Direito e a Democracia (Centre for Law and Democracy);

Recordando e reafirmando nossas Declarações Conjuntas de 26 de novembro de 1999, 30 de novembro de 2000, 20 de novembro de 2001, 10 de dezembro de 2002, 18 de dezembro de 2003, 6 de dezembro de 2004, 21 de dezembro de 2005, 19 de dezembro de 2006, 12 de dezembro de 2007, 10 de dezembro de 2008, 15 de maio de 2009, 3 de fevereiro de 2010, e 1º de junho de 2011;

Enfatizando, uma vez mais, a importância fundamental da liberdade de expressão, tanto em si mesma quanto como uma ferramenta essencial para a defesa de todos os demais direitos, como elemento central da democracia e para o avanço dos objetivos de desenvolvimento;

Manifestando nosso profundo repúdio pelos inaceitáveis índices de incidentes de violência e outros delitos contra a liberdade de expressão, tais como assassinatos, ameaças de morte, desaparecimentos, sequestros, tomada de reféns, detenções arbitrárias, ações judiciais e encarceramentos, tortura e tratamento desumano ou degradante, perseguição, intimidação, deportação e confisco ou danos a equipamentos e bens;

Advertindo que a violência e outros delitos contra pessoas que exercem seu direito à liberdade de expressão, incluindo jornalistas, outros atores dos meios de comunicação e defensores dos direitos humanos, têm um efeito dissuasivo para o livre fluxo de informações e ideias na sociedade ("censura por morte"), e por isso representam ataques não só contra as vítimas, prejudicando também a liberdade de expressão em si mesma e o direito de todas as pessoas a buscar, obter e receber informações e ideias;

Preocupados diante dos obstáculos e riscos particulares enfrentados pelas mulheres ao exercer seu direito à liberdade de expressão, o que nos leva a denunciar os delitos de intimidação relacionados especificamente à questão de gênero, tais como agressões sexuais, ataques e ameaças;

Atentos à importante contribuição que é feita à sociedade pelas pessoas que investigam e informam sobre violações de direitos humanos, delinquência organizada, corrupção e outras condutas ilícitas graves, incluindo jornalistas, atores dos meios de comunicação e defensores de direitos humanos, que pela natureza de sua profissão estão expostos à possibilidade de represálias ilícitas, e que por isso poderiam necessitar de proteção;

Condenando a situação generalizada de impunidade dos delitos contra a liberdade de expressão e a presumida falta de vontade política em alguns países para abordar essas violações, o que faz com que um número inaceitável desses delitos não seja julgado e termine infundindo mais ousadia em seus responsáveis e instigadores, e incrementando significativamente a incidência desses delitos;

Observando que a independência, celeridade e efetividade da investigação e do julgamento de delitos contra a liberdade de expressão são fatores fundamentais para abordar a impunidade e assegurar o respeito ao Estado de Direito;

Destacando que os delitos contra a liberdade de expressão, quando cometidos por autoridades estatais, representam uma violação particularmente grave deste direito e também do direito à informação, mas que, além disso, os Estados têm a obrigação de adotar medidas preventivas e de resposta em situações nas quais atores externos ao Estado cometam delitos contra a liberdade de expressão, como parte de sua obrigação de proteger e promover os direitos humanos;

Conscientes da variedade de causas que favorecem os delitos contra a liberdade de expressão, tais como altos índices de corrupção e/ou delinquência organizada, a presença de conflitos armados e a falta de observância do Estado de Direito, assim como a especial situação de vulnerabilidade de algumas das pessoas que investigam e denunciam esses problemas;

Conhecendo os diversos padrões internacionais relevantes para este tema, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, as Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais, a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, a Resolução 1738 do Conselho de Segurança da ONU (2006), a Resolução 12/16 do Conselho de Direitos Humanos da ONU: "Liberdade de Opinião e Expressão" ["Freedom of Opinion and Expression"], a Declaração de Medellín da UNESCO de 2007 e a Decisão da UNESCO sobre a segurança dos jornalistas e a questão da impunidade de 2010;

Adotamos em 25 de junho de 2012, em Porto Espanha, Trinidad e Tobago, a seguinte Declaração Conjunta sobre Delitos contra a Liberdade de Expressão:

1.      Princípios gerais

a.       Os funcionários estatais devem repudiar de modo inequívoco os ataques perpetrados em represália ao exercício da liberdade de expressão, e devem se abster de fazer declarações que possam aumentar a vulnerabilidade das pessoas que são perseguidas por exercer seu direito à liberdade de expressão.

b.       Os Estados devem refletir com clareza em seus sistemas jurídicos e suas práticas, como se salienta a seguir, que os delitos contra a liberdade de expressão revestem especial gravidade, posto que representam um ataque direto contra todos os direitos fundamentais.

c.       Isso implica, em particular, que os Estados devem:
i.         adotar medidas especiais de proteção para pessoas que possam ser perseguidas por conta de suas afirmações em ambientes onde esse problema seja recorrente;
ii.       assegurar que os delitos contra a liberdade de expressão estejam sujeitos a investigações e procedimentos judiciais independentes, rápidos e efetivos; e
iii.      assegurar que as vítimas de delitos contra a liberdade de expressão tenham acesso a reparações adequadas.

d.       Em situações de conflito armado, os Estados devem respeitar os padrões estabelecidos no artigo 79 do Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra, de 1977, que dispõe que os jornalistas gozam do mesmo status e proteção de que gozam os civis, contanto que não realizem ações que prejudiquem adversamente o seu status.

2.      Obrigação de prevenir e proibir

a.       Os Estados têm a obrigação de adotar medidas para prevenir delitos contra a liberdade de expressão em países onde exista um risco de que esses delitos ocorram e em situações específicas nas quais as autoridades saibam ou deveriam estar cientes da existência de um risco real e iminente de que tais delitos sejam produzidos, e não unicamente em casos em que as pessoas em risco solicitem proteção ao Estado.

b.       Estas obrigações incluem a adoção das seguintes disposições legais:
i.         a categoria de delitos contra a liberdade de expressão deve estar reconhecida pelo direito penal, seja em forma expressa ou como uma circunstância agravante que suponha a imposição de penas mais severas para tais delitos em razão de sua gravidade; e
ii.       os delitos contra a liberdade de expressão e o delito de obstrução de justiça em conexão com eles devem estar sujeitos à imprescritibilidade ou a prazos de prescrição ampliados (por exemplo, ampliando o prazo legal dentro do qual a investigação criminal deve ser concluída).

c.       Essas obrigações incluem a adoção das seguintes medidas:
i.         deve-se proporcionar capacitação adequada sobre delitos contra a liberdade de expressão, incluindo aqueles especificamente relacionados a questões de gênero, a funcionários encarregados de aplicar a lei, inclusive policiais e fiscais, assim como membros das forças armadas, quando for necessário;
ii.       devem-se formular e implementar pautas e manuais de atuação para funcionários encarregados de aplicar a lei que intervenham em casos de delitos contra a liberdade de expressão;
iii.      o Estado deve oferecer possibilidades de capacitação a pessoas que possam estar em risco de se tornar vítimas de delitos contra a liberdade de expressão, e este tema deve, ademais, ser tratado nos cursos universitários sobre jornalismo e comunicações;
iv.     devem-se estabelecer sistemas para assegurar o acesso efetivo à informação sobre as circunstâncias, a investigação e os processos judiciais de delitos contra a liberdade de expressão, incluindo o acesso dos meios de comunicação às cortes, em observância às garantias apropriadas de confidencialidade; e
v.       deve-se avaliar a possibilidade de estabelecer medidas gerais de proteção, tais como atendimento de saúde, seguros e outros programas de benefícios destinados às pessoas que possam estar em risco de se tornar vítimas de delitos contra a liberdade de expressão.

3.        Obrigações de proteção

a.       Os Estados devem assegurar que sejam adotadas medidas de proteção, efetivas e concretas, de forma urgente, destinadas às pessoas que possam ser atacadas por exercer seu direito à liberdade de expressão.

b.       Devem-se criar programas de proteção especializados, que considerem as necessidades e os obstáculos locais, em ambientes onde exista um risco contínuo e grave de que ocorram delitos contra a liberdade de expressão. Esses programas especializados devem incluir uma variedade de medidas de proteção, que devem se adequar às circunstâncias individuais da pessoa em risco, incluindo o seu gênero, a necessidade ou o desejo de continuar realizando as mesmas atividades profissionais e suas circunstâncias sociais e econômicas.

c.       Os Estados devem manter estatísticas detalhadas e desagregadas sobre delitos contra a liberdade de expressão e o julgamento de tais delitos, entre outras coisas, para facilitar um planejamento mais efetivo das iniciativas de prevenção.

4.        Independência, celeridade e efetividade das investigações

Quando se comete um delito contra a liberdade de expressão, os Estados devem acionar uma investigação independente, rápida e efetiva que permita julgar perante tribunais imparciais e independentes tanto aqueles que cometeram tais delitos quanto os seus autores intelectuais.

Tais investigações devem cumprir os padrões mínimos enunciados a seguir.

a.       Independência
                     i.            A investigação deve ser realizada por um órgão independente de quem quer que esteja implicado nos eventos em questão. Isso supõe independência hierárquica e institucional de tipo formal, além da adoção de aspectos práticos para assegurar tal independência.
                   ii.            Quando existirem alegações críveis sobre a participação de agentes do Estado, a investigação deve ser efetuada por uma autoridade externa à jurisdição ou ao âmbito de incumbência de tais autoridades, e os investigadores devem estar em condições de examinar todas as alegações de forma exaustiva.
                  iii.            Deve-se estabelecer um sistema efetivo para receber e tramitar denúncias vinculadas a investigações sobre delitos contra a liberdade de expressão que estiverem sendo movidas por funcionários competentes. Esse sistema deve manter suficiente independência em relação a tais funcionários e seus empregadores, e atuar de modo transparente.
                 iv.            Quando a gravidade da situação o demandar, em especial em casos de delitos frequentes e reiterados contra a liberdade de expressão, deve-se avaliar a possibilidade de estabelecer unidades de investigação específicas e especializadas – com recursos suficientes e a capacitação adequada para atuar de modo eficiente e efetivo – encarregadas de investigar delitos contra a liberdade de expressão.

b.       Celeridade
                     i.            As autoridades devem envidar todos os esforços razoáveis para agilizar as investigações, incluindo intervir tão logo haja uma denúncia oficial ou sejam apresentadas provas críveis sobre um ataque contra a liberdade de expressão.

c.       Efetividade
                     i.            Devem-se destinar recursos e oportunidades de capacitação suficientes para assegurar que as investigações sobre delitos contra a liberdade de expressão sejam exaustivas, rigorosas e efetivas, e que todos os aspectos de tais delitos sejam minuciosamente examinados.
                   ii.            As investigações devem facilitar a identificação e o julgamento dos responsáveis por delitos contra a liberdade de expressão, incluindo seus autores diretos e autores intelectuais, assim como de quem atuar de forma conivente na condição de autores, colaboradores, cúmplices ou encobridores de tais delitos.
                  iii.            Quando houver evidências de que um delito consumado possa ser um delito contra a liberdade de expressão, a investigação deve avançar com base no pressuposto de que se trata de um delito de tal natureza, até que se demonstre o contrário, e devem-se esgotar todas as vias de investigação relevantes vinculadas aos atos de expressão das vítimas.
                 iv.            Os organismos encarregados da aplicação da lei devem adotar todas as medidas necessárias para recolher as provas relevantes, e todas as testemunhas devem ser interrogadas com o objetivo de estabelecer a verdade.
                   v.            As vítimas, ou, em casos de morte, sequestro ou desaparecimento, seus parentes mais próximos, devem contar com um acesso efetivo ao procedimento. Como mínimo, a vítima ou o parente mais próximo deve poder intervir no procedimento na medida em que for necessária para resguardar seus interesses legítimos. Na maioria dos casos, isso implicará em conceder acesso a certas etapas dos procedimentos, bem como a documentos relevantes, para assegurar que a participação seja efetiva.
                 vi.            As organizações da sociedade civil devem estar autorizadas a denunciar delitos contra a liberdade de expressão – o que é particularmente relevante em casos de assassinatos, sequestros ou desaparecimentos em que os parentes mais próximos não tenham interesse ou possibilidade de fazê-lo – e a intervir no processo penal.
                vii.            As investigações devem ser conduzidas de modo transparente, sempre que isto não repercutir de modo negativo no seu avanço.
              viii.            As restrições à difusão de informações jornalísticas sobre causas judiciais relacionadas a delitos contra a liberdade de expressão devem se limitar a casos absolutamente excepcionais, onde existirem interesses claramente preponderantes que prevaleçam sobre a necessidade de transparência que é fundamental nesses casos.
                 ix.            Além das investigações penais, devem-se mover processos disciplinares quando houver provas de que funcionários públicos tenham incorrido em violações contra a liberdade de expressão no desempenho de suas funções profissionais.

5.        Reparação para as vítimas

a.       Nos processos em que forem investigadas violações do direito à liberdade de expressão, as vítimas devem estar em condições de buscar uma reparação civil adequada, independentemente de se ter determinado ou não a caracterização de um delito penal.

b.       Quando houver uma condenação por um delito contra a liberdade de expressão, deve existir um sistema que preveja para as vítimas uma reparação adequada, sem a necessidade de que elas iniciem processos legais de modo independente. Essa reparação deve ser proporcional à gravidade das violações e contemplar uma indenização econômica, bem como um leque de medidas destinadas a reabilitar as vítimas e facilitar que elas regressem de modo seguro aos seus lares, e/ou que se reincorporem ao seu emprego se assim o desejarem.

6.        Papel de outros atores interessados

a.       As organizações intergovernamentais devem continuar enfocando os seus esforços principalmente em combater a impunidade dos delitos contra a liberdade de expressão e empregar os mecanismos de avaliação disponíveis para monitorar o cumprimento das obrigações internacionais dos Estados neste sentido.

b.       Deve-se encorajar os doadores estatais e externos ao Estado a financiar projetos destinados a prevenir e combater os delitos contra a liberdade de expressão.

c.       Deve-se encorajar as organizações dos meios de comunicação a oferecer capacitação e orientação adequadas em temas de segurança, consciência sobre riscos e defesa pessoal a empregados permanentes ou que prestem serviços de forma independente, juntamente com equipamentos de segurança, quando necessário.

d.       Deve-se encorajar as organizações da sociedade civil e os meios de comunicação relevantes, conforme couber, a continuar o seu papel de monitoramento e denúncia de delitos contra a liberdade de expressão, a coordenar campanhas globais sobre esse tipo de crimes, e a consolidar a documentação pertinente, por exemplo, por meio de um site / portal central.

Frank La Rue
Relator Especial da ONU sobre a Liberdade de Opinião e Expressão

Dunja Mijatović
Representante da OSCE para a Liberdade de Imprensa

Catalina Botero Marino
Relatora Especial da OEA para a Liberdade de Expressão

Faith Pansy Tlakula
Relatora Especial da CADHP para Liberdade de Expressão e Acesso à Informação