Libertad de Expresión

4. CAPÍTULO III - JURISPRUDÊNCIA

A.                 Resumo da jurisprudência da  Corte Européia de Direitos Humanos sobre a liberdade de expressão[1]

 1.         Introdução

1. As seções deste capítulo resumem a jurisprudência sobre a liberdade de expressão desenvolvida pela Corte Européia de Direitos Humanos.  Com a inclusão destas seções no presente capítulo, o Relator Especial para a Liberdade de Expressão visa estimular os estudos jurisprudênciais comparativos, em cumprimento do mandato dos  Chefes de Estado e de Governo conferido na Terceira Cúpula das Américas, celebrada em Quebec, Canadá, em abril de 2001.  Durante essa Cúpula, os Chefes de Estado e de Governo ratificaram o  mandato do Relator Especial para a Liberdade de Expressão e decidiram que os Estados “apoiarão o trabalho do Sistema Interamericano de Direitos Humanos na  área da  liberdade de expressão, através do Relator Especial para a Liberdade de Expressão da  CIDH, que divulgará estudos jurisprudênciais comparativos e empenhar-se-á em garantir que as leis nacionais sobre liberdade de expressão sejam compatíveis com as obrigações jurídicas internacionais”.

2. O Relator Especial para a Liberdade de Expressão considera que a ampla jurisprudência da  Corte Européia sobre a liberdade de expressão é uma fonte valiosa que pode iluminar a interpretação deste direito no  sistema interamericano e servir como uma ferramenta útil para os profissionais da área e demais interessados.

3.        Em seu Relatório sobre o Terrorismo e Direitos Humanos de 2002, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos reconheceu o valor da jurisprudência européia como ferramenta útil para a interpretação do direito à liberdade de expressão garantido no sistema interamericano. Quando se trata de situações de emergência que possam configurar exceções à proibição da censura prévia garantidas pelo artigo 13.2 da Convenção Americana, a Comissão invoca a jurisprudência do Sistema Europeu de Direitos Humanos para demonstrar o alto rigor que deve ser aplicado a toda censura prévia. Neste sentido, a Comissão assinalou que “a jurisprudência do sistema europeu de direitos humanos pode servir de indicador relevante da aplicação da censura prévia no âmbito regional, em particular considerando o grande número de casos relacionados à liberdade de expressão. Apesar do sistema de direitos humanos europeu não reconhecer a mesma proibição absoluta da censura prévia que o sistema interamericano, suas instituições vêm negando-se a permitir restrições prévias à livre expressão (...)”[2].

4.     A Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais foi aberta para assinatura em novembro de 1950 e entrou em vigor em setembro de 1953. A Convenção estabelece uma lista de direitos e liberdades civis e políticas e uma arquitetura institucional para a aplicação dos direitos consagrados na Declaração Universal, constituída pela Comissão Européia de Direitos Humanos, o Comitê de Ministros do Conselho da Europa e a Corte Européia de Direitos Humanos.  Em 1998, devido à crescente carga de trabalho da Corte, entrou em vigência o Protocolo 11 da Convenção que modifica a maneira em que a Corte desempenha a função jurisdicional. Segundo o antigo sistema, a etapa principal de exame das denúncias era efetuada pela Comissão Européia de Direitos Humanos, que deixou de existir em outubro de 1999. Segundo a reforma introduzida no sistema, a Corte e a Comissão existentes foram substituidas por uma única corte que trabalha em período integral. Entretanto, o grande número de demandas atraídas pelo novo sistema levou os ministros a avaliar a possibilidade de introduzir novas reformas. Em 1999, o Presidente da nova Corte assinalou que

o constante e significativo crescimiento no número de demandas apresentadas perante a Corte põe em cheque o novo sistema. Atualmente estamos enfrentando quase 10.000 demandas registradas e mais de 47.000 fichas provisórias, bem como 700 cartas e mais de 200 chamadas telefónicas do exterior por dia. A carga de trabalho já é enorme mas ameaça por ser impressionante...[3]

5. Tanto a Convenção Americana como a Convenção Européia contêm uma disposição específica em relação à liberdade de expressão, descrita nos artigos 13 e 10 respectivamente. Contudo, a forma em que estão redigidos os artigos diferem consideravelmente: enquanto o artigo 13 da Convenção Americana contém uma lista específica de exceções ao princípio geral estabelecido no primeiro parágrafo do artigo, a Convenção Européia está formulada em termos mais genéricos.  Os artigos têm um âmbito muito diferente, sendo evidente no artigo 13 da Convenção Americana a proibição praticamente completa da censura prévia, ausente no artigo 10 do documento europeu. A Corte Interamericana de Direitos Humanos comparou o artigo 10 da  Convenção Européia com o artigo 13 da Convenção Americana e o artigo 19 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, e concluiu que as garantias da liberdade de expressão contidas na  Convenção Americana foram desenhadas para serem as mais generosas e para reduzir ao mínimo as restrições à livre circulação das idéias.[4] 

6. O valor que a Convenção Americana outorga ao direito à liberdade de expressão em comparação com a Convenção Européia torna imperativo que as normas derivadas da  jurisprudência da  Corte Européia sejam entendidas  como normas mínimas que requerem o direito à liberdade de expressão, mas nunca como uma limitação ao gozo de uma maior proteção da liberdade de expressão. Este enfoque é coerente com a opinião adotada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca da aplicabilidade simultânea dos  tratados internacionais. A este respeito, a Corte afirmou, seguindo a regra de interpretação estabelecida no inciso (b) do artigo 29 da Convenção Americana[5], que “(...)se a uma mesma situação são aplicáveis a Convenção Americana e outro tratado internacional, deve prevalecer a norma mais favorável à pessoa humana. Se a própria Convenção estabelece que suas normas não têm efeito restritivo em relação a outros instrumentos internacionais, menos ainda poderão atrair restrições presentes nesses outros instrumentos, exceto a Convenção, para limitar o exercício dos direitos e liberdades que esta reconhece.”[6](...)

2. Casos no  contexto da  Convenção Européia para a Proteção dos  Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais

 7. O parágrafo 1 do artigo 10 da Convenção Européia dispõe sobre a proteção do direito à liberdade de expressão nos seguintes termos:

Toda pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de comunicar informações ou idéias sem que possa haver ingerência de autoridades públicas e sem consideração de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.

8. O parágrafo 2 do artigo mencionado acima estabelece que:

O exercício destas liberdades, que prevê deveres e responsabilidades, poderá ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções previstas pela lei, que constituam medidas necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do delito, a proteção da  saúde ou da moral, a proteção da reputação ou dos direitos alheios, para impedir a divulgação de informações confidenciais ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.

9. As seções deste capítulo descritas a seguir referem-se a casos que mereceram decisões da Corte Européia de Direitos Humanos sobre temas relacionados ao direito da liberdade de expressão. A seleção destes temas responde à importância de sua devida compreensão na abordagem das dificuldades que enfrentam os países das Américas nesta fase de evolução do direito à liberdade de expressão.

10. Os temas examinados nesta seção estão divididos nos seguintes títulos: ordem pública; censura prévia e difamação. Os casos examinados sob o título de ordem pública referem-se a situações em que as restrições questionadas foram impostas com base na necessidade de proteção da ordem pública. Os casos que figuram sob o título de censura prévia relatam situações em que existiu uma restrição prévia à publicação baseada na busca de um objetivo legítimo. Os casos que constam do título de difamação referem-se às situações em que foram interpostas ações legais por difamação contra os denunciantes por supostamente prejudicar a reputação de outra pessoa ou pessoas através do exercício do direito à livre expressão.

11. Os casos relatados são somente alguns daqueles disponíveis sobre os temas tratados na ampla jurisprudência da Corte Européia. Os casos descritos mais adiante foram selecionados para ilustrar a interpretação que a Corte faz a respeito do direito à liberdade de expressão estabelecido no artigo 10 da Convenção Européia.  Nesses casos, a Corte determina se houve violação do direito à liberdade de expressão avaliando as restrições impostas para determinar se estão compreendidas dentro do âmbito do artigo  10.  O texto completo destes casos pode ser encontrando no sítio da  Corte Européia na Internet.[7]

 a) Ordem pública

12. O parágrafo 2 do artigo 10 da Convenção Européia estabelece que os direitos dispostos no parágrafo 1 podem estar submetidos “a certas formalidades, condições, restrições ou sanções previstas pela lei que constituam medidas necessárias numa sociedade democrática,. . . para a defesa da ordem e a prevenção do delito[.]” Nos casos relatados a seguir, a Corte Européia de Direitos Humanos analisa o conceito de ordem pública e procura determinar se as restrições impostas estão justificadas por esses fundamentos conforme a disposição do artigo .

            i)          Engel e outros contra a Holanda

13. A Corte Européia de Direitos Humanos abordou a questão de ordem pública no caso de Engel e outros contra a Holanda, de 1976.[8] Neste caso, dois dos  demandantes, recrutados no exército holandês e editores de um jornal destinado aos recrutas, publicaram um artigo no qual se alegava um comportamento ilegal por parte de vários comandantes militares, sugerindo que estes haviam utilizado técnicas de intimidação para eliminar o conflito e que os recrutados haviam sido injustamente punidos. O oficial comandante do quartel considerou que este artigo e outros da  mesma publicação, que abordavam a manifestação do sindicato de recrutados contra o governo, acabaram afetando a disciplina militar.  Depois de uma audiência, os demandantes foram condenados a vários meses de serviço em uma unidade disciplinar.

14. Ao avaliar a legalidade da restrição, a Corte Européia entendeu que a interferência satisfazia esta condição na medida em que seu propósito era evitar a desordem dentro das forças armadas. A Corte analisou o conceito de “ordem pública” afirmando que o termo engloba uma série de situações:

O conceito de “ordem” refere-se não somente à ordem pública ou “ordre public”..., mas também cumpre com a ordem que deve prevalecer dentro de um grupo especial específico.  Isto ocorre, por exemplo, quando, no  caso das forças armadas, a desordem nesse grupo pode ter repercussões para a ordem da  sociedade em seu conjunto.[9]

15. Ao analisar a questão sobre se a restrição imposta era “necessária numa sociedade democrática”, a Corte considerou que os demandantes haviam contribuído com a publicação e distribuição de uma comunicação que era de natureza exacerbante.  Em tais circunstâncias, a Corte Suprema Militar tinha razão ao considerar que os demandantes haviam tentado afetar a disciplina militar e que a imposição da pena era necessária. Portanto, os demandantes não haviam sido privados de seu direito à liberdade de expressão; simplesmente haviam sido punidos por um uso abusivo desse direito.  Dado que a sanção estava prevista em lei, elemento necessário numa sociedade democrática, e que foi aplicada com o objetivo legítimo de evitar a desordem, a Corte entendeu que o Estado não havia violado o artigo  10.

ii)        Chorherr contra Áustria

16. Uma solução similar foi aplicada ao caso Chorherr contra Áustria de 1993.[10]  Neste caso, a Corte Européia entendeu que existia uma interferência de uma autoridade pública no direito à liberdade de expressão do demandante, que estava prevista em lei e havia sido aplicada com o objetivo legítimo, a saber, a prevenção da desordem. O demandante e um amigo foram detidos por negarem-se a suspender a distribuição de folhetos que incentivavam um referendum sobre a aquisição de um avião de combate por parte das Forças Armadas Austriacas. Sua manifestação havia causado comoção numa ceremônia militar em que se comemorava o trigésimo aniversário da neutralidade austríaca.  Ambos amigos foram  informados por um oficial de polícia de que estavam perturbando a ordem pública e lhes solicitou que parassem com a “manifestação”.  Eles negaram-se a acatar a ordem, invocando seu direito à liberdade de expressão.  Apesar de advertências posteriores, o demandante e seu amigo continuaram distribuindo panfletos.  Eles ficaram presos durante três horas e meia. 

17. A Corte entendeu, com respeito à necessidade da interferência, que os Estados contratantes advogam a existência de uma certa margem de apreciação ao determinar se uma interferência pode ser “necessária”, e em que medida pode sê-lo, de acordo com o artigo 10(2). A Corte declarou que esta margem compreende a opção de meios razoáveis e apropriados que possam ser utilizados pelas autoridades para garantir a realização de manifestações legítimas de forma pacífica.  Neste caso, a Corte observou que a natureza, importância e escala do desfile podia justificar, na opinião da  polícia, o reforço das forças empreendidas. Além disso, o demandante, ao escolher este evento, deveria ter imaginado que poderia provocar um distúrbio que exigisse medidas de restrição, que a Corte não achou excessivas. Por último, o Tribunal Constitucional austríaco aprovou estas medidas, estabelecendo expressamente que as mesmas tinham o propósito de manter a paz e não frustrar a expressão de opiniões.  A Corte afirmou que existiu uma relação razoável de proporcionalidade entre os meios empregados e o objetivo legítimo perseguido e, em consequência, não houve uma violação do artigo 10.

iii)        Piermont contra França

18. A Corte Européia determinou que havia uma violação do artigo 10 da Convenção Européia no caso de Piermont contra França, de 1995.[11]  Neste caso, a demandante, uma pacifista alemã, ambientalista e membra do Parlamento Europeu, visitou a Polinésia Francesa durante uma campanha eleitoral prévia às eleições para a Assembléia Territorial e o Parlamento. A demandante foi objeto de uma ordem de expulsão do território depois de ter participado de uma manifestação durante a qual denunciou a continuação de provas nucleares e da presença francesa no Pacífico. A demandante fugiu para a Nova Caledônia, que também estava em meio a uma campanha eleitoral. Na sua chegada, ela foi expulsa do território devido à probabilidade de sua presença durante as eleições causar desordem pública.

19. A Corte Européia determinou que a Polinésia Francesa e a Nova Caledônia interferiram com o direito à livre expressão. Ao abordar a legitimidade da interferência na Polinésia Francesa, a Corte concluiu que a restrição estava prevista em lei e de acordo com o objetivo legítimo de prevenir a desordem e preservar a integridade territorial.  Contudo, a Corte não considerou que a interferência fosse necessária numa sociedade democrática. A Corte ressaltou que o discurso da demandante de modo algum fomentava a violência, e ocorreu durante uma manifestação pacífica e autorizada. A Corte concluiu que não se havia conseguido alcançar um equilíbrio razoável entre o interesse público de prevenir a desordem e preservar a integridade territorial, por uma parte, e o direito da  demandante à liberdade de expressão, pela outra. Ao abordar a legitimidade da interferência na Nova Caledônia, a Corte declarou que a ordem de exclusão equivalia a uma interferência, dado que a demandante não pôde ter contato com os políticos que a haviam convidado nem manifestar suas idéias no  lugar. A interferência estava prevista em lei; o Alto Comissionado tinha direito a utilizar suas faculdades policiais gerais para proibir a demandante baseado em razões de segurança pública. Entretanto, quanto à necessidade da interferência, a Corte declarou que, embora a atmosfera política fosse tirana e a chegada da demandante desse lugar a uma limitada demostração de hostilidade, não existia uma diferença substancial em sua posição a respeito dos dois territórios.

iv)                Incal contra Turquia

20. A Corte concluiu pela violação do artigo 10 da  Convenção Americana no caso de Incal contra Turquia, de 1998.[12]  O demandante era um membro do Comitê Executivo do Partido Popular dos Trabalhadores. O Comitê pediu autorização oficial para distribuir um panfleto no qual se pedia o estabelecimento de comitês de vizinhos para oporem-se à política oficial de expulsar os curdos da cidade de Izmir. Consequentemente, foi obtida uma ordem de apreensão que determinava o confisco de todos os exemplares do panfleto, baseada na propaganda separatista capaz de incitar a população a resistir ao governo e cometer crimes. Também foi instaurado um processo penal contra o demandante e outros membros do Comitê. O demandante foi declarado culpado de tentativa de incitação ao ódio ou à hostilidade através de termos racistas e foi sentenciado a seis meses e 20 dias de prisão. A raíz desta condenação, foi exonerado da administração pública e lhe foi proibido participar de uma série de atividades dentro das organizações políticas, as associações ou os sindicatos.

21. A Corte Européia entendeu que havia uma interferência de uma autoridade pública no  direito à liberdade de expressão do demandante; estava prevista emr lei e se havia aplicado na consecução de um objetivo legítimo, a saber, a prevenção da desordem. Quanto à questão da “necessidade”, a Corte entendeu que nenhum dos chamados formulado pelo panfleto equivalia a uma incitação à violência, hostilidade ou ódio entre os cidadãos.  A Corte expressou também que os limites da crítica permissíveis são mais amplos com respeito ao governo que em relação ao cidadão particular, inclusive um político, e que, numa democracia, as ações ou omissões do governo devem ser objeto de um escrutínio rigoroso por parte da opinião pública. Portanto, a posição dominante que ocupa o governo torna necessário que exerça restrição ao recorrer a um processo penal, particularmente quando existem outros meios para responder a ataques e críticas injustificados de seus adversários. A Corte observou que, apesar disto, fica aberta às autoridades competentes a adoção de medidas, incluso de natureza penal, destinadas a reacionar devidamente perante esses comentários.  A Corte observou a natureza radical da interferência. Tendo em conta os antecedentes de terrorismo, não existia nada que pudesse merecer a conclusão de que o demandante era o responsável pelos problemas de terrorismo em Turquia ou Izmir.  A Corte concluiu que a condenação do demandante era desproporcional com o objetivo perseguido e, portanto, desnecessária.

 b)         Censura prévia

22.        Em seu Relatório sobre Terrorismo e Direitos Humanos de 2002, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos reconheceu que a jurisprudência do sistema europeu de direitos humanos pode servir de indicador relevante da aplicação da questão da censura prévia no âmbito regional, em particular considerando seu número grande de casos refetentes a liberdade de expressão. Embora o sistema de direitos humanos europeu não reconheça a mesma proibição absoluta da censura prévia que o sistema interamericano, suas instituições foram reincidentes em permitir restrições prévias à livre expressão como ilustram os casos “Spycatcher”. [13]  Nos casos a seguir, a Corte Européia analisa casos de censura prévia para determinar se as restrições impostas estão prescritas por lei são necessárias numa sociedade democrática, de acordo com o disposto no artigo 10, Seção 2 da Convenção Européia.

i)          Handyside contra o Reino Unido

23.        No caso Handyside contra Reino Unido de 1976[14] os demandantes, uma empresa editorial, publicaram  “The Little Red Schoolbook”, destinado aos estudantes de 12 anos ou mais. O livro continha capítulos sobre sexo, incluindo subseções sobre questões tais como os anticonceptivos, a pornografia, a homosexualidade e o aborto, bem como direções para obter ajuda e assessoramento sobre assuntos sexuais. O livro havia sido publicado primeiro na Dinamarca e posteriormente em vários países europeus e não europeus. Depois de receber uma série de denúncias, as instalações dos demandantes foram invadidas e os exemplares do livro foram confiscados. Os demandantes foram citados por um tribunal e declarados culpados da posse de livros obscenos para publicação com fins de lucro. Eles foram multados e ordenados a pagar as custas processuais. O tribunal também emitiu uma ordem de destruição dos livros pela polícia. A condenação foi confirmada na segunda instância e os livros foram destruídos. Posteriormente, foi publicada uma edição revisada do livro, após sofrer alterações de texto e eliminado algumas cláusulas ofensivas. 

24.        A Corte decidiu que não houve violação do artigo 10 da  Convenção Européia, tendo em conta que a condenação dos demandantes constituía uma interferência no direito à liberdade de expressão que estava “prevista em lei” e estava de acordo com o objetivo legítimo de proteger a moral. O que estava em questão era se a interferência havia sido “necessária em uma sociedade democrática”. A este respeito, a Corte determinou que na esfera da “proteção da moral” era impossível encontrar na legislação nacional de diversos Estados contratantes um conceito europeu uniforme.  Por esta razão e interpretando que o adjetivo “necessário” não é sinônimo dos termos “indispensável” ou “absolutamente necessário” incluídos em outras disposições da Convenção, a Corte concluiu que cabe deixar aos Estados contratantes uma margem de apreciação para avaliar a “urgente” necessidade social que implica a noção de “necessidade”. A Corte Européia ressaltou que a proporcionalidade entre uma restrição e o objetivo legítimo ao qual serve está implícita no conceito de “necessidade”. A Corte estimou que neste caso a restrição aplicada era proporcional ao objetivo da restrição, pois a aplicação de restrições mais leves provavelmente não teria permitido chegar ao resultado desejado. Além disso, a Corte considerou que o fato de que não houve ações contra a edição revisada, que diferia amplamente da edição original nos aspectos em questão, sugeria que as autoridades haviam desejado limitar-se ao que era estritamente necessário.

25.        A Corte também declarou que era necessário prestar uma maior atenção aos princípios que caracterizam uma “sociedade democrática”. Em particular, afirmou que:

A liberdade de expressão constitui um dos cementos essenciais dessa sociedade, uma das condições básicas para seu progresso e para o desenvolvimento de todos os homens.  Sujeita a [restrições legítimas] é aplicável não somente à “informação” ou as “idéias” que são recebidas favoravelmente ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também àquelas que ofendem, chocam ou perturbam o Estado ou algum segmento da  população.  Essas são as exigências do pluralismo, da tolerância, da abertura mental, sem as quais não existe uma “sociedade democrática”.  Isto significa, entre outras coisas, que toda “formalidade”, “condição”, “restrição” ou “sanção” imposta  nesta esfera deve ter proporcionalidade em relação ao objetivo legítimo que se busca.[15]

 ii)         The Sunday Times contra o Reino Unido

 26.        No  caso The Sunday Times contra o Reino Unido, de 1979,[16] a Corte Européia determinou que havia uma interferência  com o direito à liberdade de expressão e uma violação do artigo  10 da  Convenção Européia.  Neste caso, um laboratório britânico fabricou e distribuiu medicamentos  que continham talidomida, substância que supostamente causava defeitos em recém nascidos cujas mães haviam utilizado este medicamento durante a gravidez. Os medicamentos foram retirados do mercado em 1961.  Numerosos pais de bebês que posteriormente nasceram com defeitos iniciaram ações contra a empresa.  Em 1972, embora muitos dos julgamentos ainda estavam em etapa de negociação, o jornal demandante publicou um artigo no qual criticava as propostas de solução extrajudicial, bem como vários aspectos da  legislação interna em casos de danos pessoais, e denunciava a demora transcorrida desde os nascimentos. Uma nota de pé do artigo anunciava que num artigo futuro seria descrito como ocorreu a tragédia, incluindo a investigação para determinar se o laboratório havia efetuado as provas adequadas do medicamento e se sabia que a talidomida podia ter efeitos negativos no feto. O Procurador Geral solicitou e obteve uma liminar que proibiu a publicação deste futuro artigo argumentando que poderia constituir desobediência contra o tribunal. O demandante apelou sem êxito. A liminar foi finalmente revogada em 1976, depois que as partes chegaram a uma solução aprovada pelos tribunais. O artigo foi publicado quatro dias depois.

27.  Quanto à questão sobre se a liminar estava ou não “prevista em lei”, a Corte observou que o processo de apelações havia se baseado em dois princípios constantes: o princípio de pressão (a deliberada tentativa de incidir num processo) e o princípio do prejulgamento (causar preconceito no público sobre questões formuladas num litígio pendente). A Corte considerou que não havia dúvidas de que estes tinham sido formulados com suficiente precisão para permitir que os demandantes percebessem o grau adequado de consequências que a publicação do artigo poderia implicar e concluiu que a liminar estava “prevista em lei”. Além dissso, a Corte entendeu que a expressão “prevista em lei” implicava ao menos em dois requisitos: 

Primeiro, que a lei deveria ser suficientemente acessível: o cidadão deve estar em condições de ter indícios de que é adequada às circunstâncias das normas jurídicas aplicáveis a um caso dado.  Em segundo lugar, uma norma não pode ser considerada “lei” a menos que esteja formulada com precisão suficiente para permitir que regule a conduta do cidadão: deve estar em condições –se necessário, com o assessoramento devido- de prever num grau razoável as circunstâncias das consequências que pode levar uma ação determinada.  Essas consequências não necessitam ser previsíveis com absoluta certeza: a experiência demonstra que isto é impossível. Embora a certeza seja altamente desejável, pode trazer consigo uma rigidez excessiva e a lei deve estar em condições de seguir o ritmo das circunstâncias modificatórias.  Sendo assim, muitas leis estão inevitavelmente redigidas em termos que, em maior ou menor medida, são vagos, e cuja interpretação e aplicação são questões da prática.[17]

28. No que se refere à lei de desobediência contra o tribunal servir ou não a um objetivo legítimo, os demandantes afirmaram que a lei estava destinada a evitar a interferência com o recurso da justiça e evitar o perigo de prejuízo.  A Corte concluiu que a lei de desobediência contra o tribunal servia ao objetivo legítimo de salvaguardar a autoridade e imparcialidade da  justiça.

29. Quanto à cuestão sobre se a liminar era ou não “necessária numa sociedade democrática”, a Corte concluiu que a interferência não correspondia a necessidade social suficientemente urgente para contrariar o interesse público da liberdade de expressão dentro do sentido da  Convenção Européia. A Corte considerou que o efeito do artigo, caso fosse publicado, teria variado de um leitor para o outro. Sendo assim, era improvável que a publicação tivesse consequências adversas para a autoridade judicial, como afirmado. A Corte afirmou também que o desastre da talidomida era matéria de indiscútivel preocupação pública, pois as famílias das numerosas vítimas tinham um interesse vital em saber todos os fatos subjacentes e as diversas soluções possíveis. A Corte entendeu que:

Embora os meios de difusão massiva não devam ultrapassar os limites impostos pelo interesse da devida administração de justiça, compete-lhes distribuir informação e idéias relacionadas com matérias que chegam à justiça assim como outras áreas de interesse público. Os meios de comunicação tem a tarefa de distribuir essa informação e idéias e o público também tem direito a recebê-las.[18] 

[O direito à liberdade de expressão] garante não somente a liberdade da imprensa de informar ao público, mas também o direito do público a ser devidamente informado.[19]

 iii)                Os casos de “Spycatcher”

30. A Corte decidiu que foi violado o direito à liberdade de expressão nos casos de 1991 The Sunday Times contra o Reino Unido (No.2)[20] e The Observer and The Guardian contra o Reino Unido.[21]  Nestes casos, um ex-integrante do Serviço Secreto do Reino Unido havia escrito suas memórias, tituladas “Spycatcher”, que continham denúncias de graves culpa profissional e conduta ilegal. O livro ia ser publicado na Austrália quando o governo britânico abriu um processo para decretar uma liminar suspendendo a publicação sob o argumento que o autor havia recebido a informação contida no livro sob a obrigação de confidencialidade. Foram abertas ações na justiça britânica e obtidas liminares (órdenes inhibitorias provisionales)restringindo toda publicação posterior do tipo em questão até que fosse aberta a fase de mérito da ação na Austrália.  The Sunday Times, um jornal dominical, foi objeto de várias liminares que lhe impediram publicar detalhes do livro “Spycatchers”. Embora o processo na Austrália estava pendente, outros dois jornais, The Observer e The Guardian, publicaram breves artigos nas páginas interiores informando sobre a audiência pendente na Austrália e oferecendo detalhes de parte do conteúdo do manuscrito de “Spycatcher”.  Posteriormente, foram abertas ações contra The Observer e The Guardian por violação de confiança. O Procurador Geral também pediu e obteve liminares que lhes impediam de publicar o material de “Spycatchers”. Quando foi anunciado que o livro seria publicado brevemente nos Estados Unidos, The Sunday Times publicou uma primeira entrega dos extratos de “Spycatcher”, calculando que coincidiria com a publicação do livro nos Estados Unidos. Foram abertas ações por desobediência contra The Sunday Times argumentando que a publicação frustrou o propósito das liminares originais contra The Observer e The Guardian, e foi então concedida uma liminar transitória contra The Sunday Times, que lhe impedia publicar novas entregas durante uma semana.  Um número substancial de exemplares do livro haviam sido levados para o Reino Unido por cidadãos britânicos que haviam visitado os Estados Unidos ou que o haviam adquirido por correio em livrarias  norte-americanas. “Spycatchers” foi publicado na Austrália e também foi colocado à venda no Canadá, Irlanda e vários países europeus, bem como na Ásia.  Entretanto, uma versão modificada da liminar que restringia a publicação por The Sunday Times de detalhes do livro continuou vigente até depois da conclusão das duas ações na Austrália e os procedimentos por desobediência iniciados contra o jornal. 

31. No caso de The Sunday Times, e com respeito à questão sobre se as mencionadas ordens haviam sido “necessárias numa sociedade democrática”, a Corte Européia concluiu de forma negativa, afirmando que houve uma violação do artigo 10 da Convenção Européia.  Na opinião do governo, a continuidade das liminares continuava sendo “necessária”, segundo os termos do artigo 10, para manter a autoridade da justiça e com isto proteger os interesses da segurança nacional. O governo argumentava que, apesar da publicação nos Estados Unidos a) o Procurador-Geral continuava tendo fundamentos para uma liminar contra o demandante, cuja causa seria determinada caso fossem impostas restrições à publicação até que fosse concluído o processo; e b) continuava existindo um interesse de segurança nacional de impedir a divulgação geral do conteúdo do livro através da imprensa e um interesse público de desincentivar a publicação não autorizada de memórias que contivessem material confidencial.  A Corte considerou que o fato de que a nova publicação do material de “Spycatchers” poderia ser prejudicial para julgar as reivindicações do Procurador-Geral quanto ao prolongamento das liminares, era sem dúvida, com o objetivo de manter a autoridade da  justiça, uma razão “pertinente” para manter as restrições em questão. Todavia, a Corte concluiu que, nas circunstâncias, não constituia uma razão suficiente para efeitos do artigo 10.

32. Com referência aos interesses de segurança nacional que serviram de fundamento, a Corte Européia, no caso de The Sunday Times, observou que, embora as liminares terem sido decretadas inicialmente com base numa quebra de confiança, após o livro ter sido publicado nos Estados Unidos e perdido seu carácter confidencial, o propósito das liminares havia sido reduzido à “promoção da eficiência e reputação do Serviço Secreto”, em particular, ao preservar a confiança em terceiros nesse serviço, deixando claro que a publicação não autorizada das memórias de ex-membros não seria permitida, e dissuadindo outros que pudessem seguir os passos do autor. Estes objetivos foram considerados insuficientes para justificar as liminares. Além disso, a Corte assinalou que não era claro que as ações contra o demandante continuariam avançando até a consecução destes objetivos, além das medidas adotadas contra o próprio autor. Adicionalmente, a continuação das restrições após a publicação do livro nos Estados Unidos impedia que os jornais exercessem seu direito e dever de difundir informação já disponível sobre uma questão de legítimo interesse público.

33. Quanto ao requisito de que as restrições no caso de The Observer and The Guardian estivessem previstas em lei, os demandantes advogaram que os princípios jurídicos em que se fundamentaram as liminares não eram suficientemente previsíveis.  Os princípios derivavam do direito comum e nunca antes haviam sido aplicados a um caso similar. Contudo, a Corte considerou que, dado que os princípios haviam sido expressos como princípios de aplicação geral, tinham que ser usados ocasionalmente em situações novas.  Sua utilização nesta ocasião não implicava mais que a aplicação de normas existentes a um conjunto de circunstâncias diferentes. Em todo caso, tendo examinado os princípios aplicáveis de direito comum, a Corte não teve dúvidas de que estavam formuladas com um grau de precisão suficiente numa matéria deste tipo. Portanto, a restrição estava “prevista em lei”.

34. Com relação ao requisito de que as restrições no  caso deThe Observer and The Guardian fossem “necessárias numa sociedade democrática”, a Corte Européia distinguiu duas etapas na  evolução dos fatos.  Durante o primeiro período, antes de que “Spycatcher” fosse publicado nos Estados Unidos, os demandantes haviam publicado dois artigos que mencionavam a atuação indevida do Serviço Secreto mencionada em “Spycatcher”.  As liminares haviam sido concedidas argumentando que o Procurador-Geral pretendia conseguir uma proibição permanente da publicação de “Spycatcher”; a denegação das liminares destruiria nos fatos a substância das ações e, com isto, a pretensão de proteger a segurança nacional. Existiam razões “pertinentes” para proteger a segurança nacional como para manter a autoridade da  justiça e, quanto a este período, a liminar poderia ser justificada como “necessária numa sociedade democrática”.  Quanto ao segundo período, depois que “Spycatcher” fosse publicado nos Estados Unidos, a Corte observou que a causa do Procurador-Geral havia sofrido uma metamorfose. Em 14 de julho de 1987, “Spycatcher” foi publicado nos Estados Unidos, o que significou que o conteúdo do livro deixou de ser matéria de especulação e que sua confidencialidade havia sido destruída.  A premência das liminares depois de julho de 1987 impedia que os jornais exercessem seu direito e dever de distribuir informação já disponível sobre uma matéria de legítima preocupação pública. Portanto, após 30 de julho de 1987, a interferência  denunciada já não era “necessária numa sociedade democrática”.  De maneira que a Corte concluiu que existiu uma violação do direito à liberdade de expressão no segundo período mas que esta não existiu no primeiro período.

vi)       Wingrove contra o Reino Unido

35. No  caso de Wingrove contra o Reino Unido de 1996, [22]  a Corte Européia concluiu que não houve violação do direito à liberdade de expressão.  O demandante era um diretor de cinema que escreveu um roteiro e dirigiu a produção de um vídeo intitulado “Visões do êxtase”, em que apareciam Santa Teresa e Cristo participando de atividades sexuais. O demandante apresentou o filme à Direção de Classificação de Filmes do Reino Unido para poder oferecê-lo legalmente ao público e a Direção rejeitou a classificação argumentando que considerou o filme uma blasfêmia. 

36. Ao determinar se a interferência estava “prevista em lei”, a Corte declarou que as leis pertinentes devem estar “formuladas com suficiente precisão para permitir aos afetados –se necessário, com o devido assessoramento jurídico- prever, num grau razoável da circunstância, as consequências que uma determinada ação pode ter”.[23] Além disso, a Corte observou que uma lei que “confere discricionariedade não é em si mesma incompatível com este requisito, sempre que o âmbito da discricionariedade e a maneira em que se exerce estejam indicados com claridade suficiente, tendo em conta o objetivo legítimo em questão de ofercer adequada proteção individual contra uma ingerência arbitrária.”[24]  A Corte reconheceu  que o delito de blasfêmia não pode, por sua própria natureza, prestar-se a uma definição jurídica precisa.  As autoridades nacionais devem, portanto, contar com um grau de flexibilidade para determinar se os fatos de um caso particular estão compreendidos dentro da definição aceita do delito.[25]  A Corte também observou que não existia incerteza ou desacordo entre as partes quanto à definição de blasfêmia na legislação inglesa. Depois de ver o filme, a Corte concluiu que o demandante poderia ter previsto razoavelmente que seu filme poderia ser considerado uma blasfêmia. Dado que a lei outorgou ao demandante uma adequada proteção contra uma interferência arbitrária, esta considerou que a restrição estava “prevista em lei”. Quanto à legitimidade da lei sobre blasfêmia, a Corte Européia considerou que o objetivo da lei era proteger os cristãos e os que simpatizavam com a fé cristã contra um sentimento de insulto ou ultraje. Isto correspondia à proteção de outros contida no  artigo 10(2). A Corte entendeu que a determinação sobre se realmente existia uma necessidade de proteção era uma questão vinculada à necessidade da interferência e não a sua legitimidade. A Corte assinalou também que o fato de que a lei protegia somente o cristianismo e não as outras religiões não contrariava a legitimidade do objetivo perseguido. 

37. Ao determinar se a interferência era “necessária numa sociedade democrática”, a Corte reconheceu que existiam sólidos argumentos para abolir as leis de blasfêmia, como seu caráter discriminatório. Do mesmo modo, a Corte considerou que não existia um conjunto de normas morais uniforme nem um conceito homogêneo dos  requisitos “da proteção dos direitos dos demais” em relação aos ataques contra as crenças religiosas na Europa. Adicionalmente, existia um acordo suficiente quanto ao sentido jurídico e social entre os Estados membros do Conselho da Europa acerca da questão sobre se a censura de material blasfêmio era desnecessária numa sociedade democrática. A Corte entendeu que os Estados estão em melhores condições que um órgão internacional para determinar o que ofende as pessoas, particularmente quando as convicções religiosas variam no espaço e no tempo. A Corte respaldou esta afirmação com o postulado de que os Estados contam com uma ampla “margem de apreciação” quando regulamentam a expressão vinculada a “matérias suscetíveis de ofender convicções pessoais íntimas na esfera da moral, especialmente a religião”, enquanto que os Estados dispõem de menos liberdade para restringir a expressão ou o debate político de matérias que afetam o interesse público. A Corte considerou que continuava sendo necessária a supervisão do cumprimento das obrigações dos Estados para evitar riscos de interferência arbitrária ou excessiva, particularmente em relação ao carácter “amplo e ilimitado” do conceito de blasfêmia e as salvaguardas intrínsecas na legislação. A Corte reconheceu que, dado que a restrição era uma forma de censura prévia, estaria sujeita à restrição de um escrutínio especial. A Corte declarou que a blasfêmia não proibia a expressão de opiniões hostis ao cristianismo ou meramente ofensivas para os cristãos. Pelo contrário, as leis estabelecem que o insulto à religão deve ser grave, como ilustram os termos de direito comum – “despreciativo”, “injurioso”, “calunioso”, ou “absurdo”. A Corte informou que o “alto nível de profanação” que deve ser observada servia como salvaguarda contra a arbitrariedade. A Corte concluiu que a justificação da interferência era pertinente e suficiente e que as decisões das autoridades não eram arbitrárias nem excessivas, motivo pelo qual não se configurava uma violação do direito à liberdade de expressão.

continua...



[1]Este capítulo foi preparado com a assistência de Megan Hagler, uma estudante de terceiro ano de direito da  Faculdade de Direito da  American University em Washington, que realizou a investigação para este relatório, e de Andrea De la Fuente, graduada recentemente pela Universidade Torcuato Di Tella, Argentina, que redigiu o relatório.  Ambas foram estagiárias  da Relatoria  Especial para a Liberdade de Expressão em 2003.  A Relatoria agradece suas contribuições.  Os resumos dos  casos contidos no presente capítulo foram baseados principalmente nos resumos de casos oferecidos por  Artigo  XIX, uma organização não governamental com sede em Londres empenhada na  promoção da  liberdade de expressão e o acesso à informação oficial.  Os resumos dos casos enviados pelo Artigo  XIX estão disponíveis em http://www.article19.org

[2]Ver CIDH, Relatório sobre Terrorismo e Direitos Humanos, OAS/Ser.O./V/II.116, Docontra 5 rev.1 corr. 22 de outubro de 2002, págs. 212-213.

[3]Presidente da  Corte Européia Permanente de Direitos Humanos, citado em 20/3 Hum.Rts.L.J. 114 (1999), citado por Henry J. Steiner y Philip Alston, International Human Rights in Context, Segunda Edição, 799.

[4]Corte Interamericana de Direitos Humanos, Agremiação Obrigatória de Jornalistas (artigos 13 e 29 da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos), Opinião Consultiva OC-5/85, Série A No. 5, Sentença de 13 de novembro de 1995, par. 50.

[5]O artigo  29 da  Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos dispõe: “Nenhuma disposição da  presente Convenção pode ser interpretada no sentido de:  b. limitar o gozo e o exercício de qualquer direito ou liberdade que possa estar reconhecido de acordo com as leis de qualquer dos  Estados partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um destes Estados.

[6]OC-5/85, supra, nota 4, par. 52.

[7] Corte Européia de Direitos Humanos, http://www.echr.coe.int/

[8]Corte EDH, Caso de Engel e outros contra Países Bajos, Sentença de 23 de novembro de 1976, Demanda Nº 00005100/71; 00005101/71; 00005354/72; 00005370/72.

[9] Ibid, par. 98.

[10] Corte EDH, Caso de Chorherr contra Austria, Sentença de 25 de agosto de 1993, Demanda Nº 13308-87.

[11] Corte EDH, Caso de Piermont contra França, Sentença de 20 de março de 1995, Demanda Nº 015773/89, 15774/89.

[12] Corte EDH, Caso de Incal contra Turquía, Sentença de 9 de junho de 1998, Demanda Nº 22678193.

[13] Ver CIDH, Relatório sobre Terrorismo e Direitos Humanos, Nota 2 supra, págs. 194 e 195.

[14]Corte EDH, Caso de Handyside contra o Reino Unido, Sentença de 7 de dezembro de 1976, Demanda Nº 5493/72.

[15] Ibid, par. 49.

[16]Corte EDH, Caso de The Sunday Times contra o Reino Unido, Sentença de 26 de abril de 1979, Demanda Nº 6538/74.

[17] Ibid, par. 49.

[18] Ibid, par. 65.

[19] Ibid, par. 66.

[20]Corte EDH, Caso The Sunday Times contra Reino Unido (No.2), Sentença de 26 de novembro de 199?, Demanda Nº 00013166/87.

[21]Corte EDH, Caso The Observer and Guardian contra Reino Unido, Sentença de 26 de novembro de 1991, Demanda Nº 00013585/88.

[22]Corte EDH, Caso de Wingrove contra o Reino Unido, Sentença de novembro de 1996, Demanda Nº 00017419/90

[23] Ibid, par. 40.

[24] Ibid, par. 40.