VIGÉSIMO NONO PERÍODO EXTRAORDINÁRIO DE SESSÕES                OEA/Ser.P

18 de abril de 2002                                                                                            AG/doc.9 (XXIX-E/02)

Washington, D.C.                                                                                              18 abril 2002

                                                                                                                        Original: espanhol

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

RELATÓRIO DO SECRETÁRIO-GERAL DA OEA, CÉSAR GAVIRIA,

EM CUMPRIMENTO À RESOLUÇÃO CP/RES. 811 (1315/02),

“SITUAÇÃO NA VENEZUELA”

 

 

 

 


RELATÓRIO DO SECRETÁRIO-GERAL DA OEA, CÉSAR GAVIRIA,

EM CUMPRIMENTO À RESOLUÇÃO CP/RES.811 (1315/02),

“SITUAÇÃO NA VENEZUELA”

 

Washington D.C. 18 de abril de 2002

 

 

            Cabe a mim, como Secretário-Geral da OEA, apresentar a este período extraordinário de sessões da Assembléia Geral o relatório que o Conselho Permanente dispôs fosse apresentado mediante a resolução CP/RES. 811 (1315/02) como desdobramento do artigo 20 da Carta Democrática.  Na referida resolução, fui eu incumbido de investigar os fatos ocorridos em 11 e 12 de abril, bem como de tomar as providências necessárias, inclusive usar meus bons ofícios, para promover a mais pronta normalização da institucionalidade democrática.

 

            Concluída a reunião dos Presidentes do Grupo do Rio na Costa Rica na sexta-feira 12 de abril, fui logo informado de suas decisões tanto pelo Presidente Miguel Angel Rodríguez como por seu Chanceler Roberto Rojas.  Tive a oportunidade de com eles trocar opiniões ao longo do dia e, juntamente com a Presidente do nosso Conselho, a Embaixadora Margarita Escobar, nos mantivemos atentos às suas deliberações.  Ao encerrar-se a reunião, efetuamos algumas consultas com a finalidade de dar cumprimento à solicitação do Grupo do Rio de que se reunisse o antes possível o Conselho Permanente.  Os Presidentes também solicitaram que me inteirasse da realidade política da Venezuela pelos meios que considerasse mais adequados.

 

            É conveniente assinalar que o grupo do Rio considerou a renúncia do Presidente Chávez e a destituição do Vice-Presidente e do seu gabinete como fatos consumados, motivo por que não foi solicitada sua restituição como parte da ação necessária para defender a ordem constitucional.

 

            Em sessões informais e privadas, na sexta-feira à noite e no sábado, sob a correta direção da Embaixadora Margarita Escobar, o Conselho Permanente examinou a situação na Venezuela, condenou a alteração da ordem constitucional e os lamentáveis atos de violência e expressou sua solidariedade para com o povo desse país.  Na manhã de sábado, aquele que se autodenominava presidente do governo de transição, informou à OEA que havia sido alterada a ordem constitucional e fez algumas outras afirmações, que constavam de uma mensagem distribuída às delegações.  Também declarou que queriam fazer-se representar na reunião por um funcionário da Missão da Venezuela e que logo enviariam as cartas de credenciamento. Tudo isso foi levado ao conhecimento das missões.  Comuniquei-lhe que, no dia seguinte, eu viajaria a Caracas com o mandato que me fora conferido pelo Conselho Permanente.

 

            O Secretário-Geral, autorizado pelo Conselho Permanente, se fez acompanhar pelas Embaixadoras Margarita Escobar, Presidente do Conselho Permanente, e Lisa Shoman, Representante de Belize e porta-voz da CARICOM.  Alguns dos embaixadores do Grupo do Rio não me puderam acompanhar, pela rapidez com que se teve de levar a efeito a missão.  As embaixadoras me deram apoio e conselhos muito valiosos, mas devo esclarecer que tudo o que foi por mim afirmado nessa missão, em reuniões privadas ou junto aos meios de comunicação, bem como o conteúdo deste relatório, são da minha exclusiva responsabilidade.

 

 

            Os senhores saberão compreender a dificuldade de apresentar um relatório sobre os fatos.  Não obstante isso, propus-me fazer uma exposição sucinta dos antecedentes das ocorrências de 11 a 13 de abril, a qual de modo algum pode ser interpretada como uma justificação da alteração da ordem constitucional.  Trata-se unicamente de um contexto em que ocorreram os fatos trágicos de 11 de abril.

 

            Na muito difícil conjuntura que as instituições democráticas da República Bolivariana da Venezuela viveram, também julguei oportuno observar aspectos da vida institucional do país em relação a disposições da Carta Democrática.

 

            Teria de começar por dizer que é necessário assinalar, pelo menos até que se demonstre o contrário, que os organizadores da manifestação convocada pela oposição política e várias organizações sociais nos dias anteriores a 11 de abril e no própria dia 11 não eram as mesmas pessoas que usurparam o poder, detiveram o Presidente Chávez e procuraram instaurar o que chamaram de governo provisório, cujo exercício de poder encontrou ampla e generalizada rejeição não só por sua origem fática, mas também pelas decisões que tomou e que consistiam no fechamento dos organismos eleitos pelo povo, na intervenção do Poder Judiciário e de todos os organismos do chamado “poder moral” e, do ponto de vista prático, na derrogação da Constituição e de muitas leis promulgadas sob a égide desta.

 

            Podemos afirmar que o governo, que acabava de ser instaurado sem nenhuma legitimidade democrática, era fruto de decisões tomadas pelos militares.  Em carta, que chegou ao conhecimento dos membros do Conselho Permanente, quem presidia o que se autoqualificou de governo provisório expressamente reconheceu a ruptura constitucional.

 

            Para ventura das instituições democráticas da Venezuela, essa alteração da ordem constitucional foi revertida pela reação de boa parte da oficialidade das Forças Armadas e por enérgica resposta dos cidadãos, tanto de defensores como de opositores do Governo do Presidente Chávez.

 

            Como parte da responsabilidade que os senhores me confiaram, estive em reunião com grande grupo de porta-vozes de algumas das principais instituições do país, tais como o Presidente Hugo Chávez e seu Chanceler; a mesa diretora da Assembléia Nacional, o Procurador-Geral da Nação, o Controlador, o Defensor Público e o Presidente do Tribunal Superior de Justiça.  Também me reuni com o Cardeal e representantes da Conferência Episcopal, alguns grupos da sociedade civil, representantes de alguns dos principais jornais, cadeias de televisão e radio, a Central de Trabalhadores da Venezuela, os membros dos partidos da oposição na Assembléia Nacional e outras personalidades que apresentaram documentos em que fixavam sua posição quanto aos fatos ocorridos e que, na sua opinião, traduziam a realidade venezuelana.

 

            Senhores Chanceleres, das conversações com os diferentes setores, quero salientar o seguinte:  o Presidente da República, em todas as suas alocuções, falou de reflexão, de retificação, de emendas.  Assegurou “que não haveria atitudes revanchistas, nem perseguições, nem abusos”.  Disse que a ocorrência era uma “imensa lição”; “que se devia fazer uma profunda reflexão”; que era necessário agir com “calma e cordura”; que era necessário “corrigir o que fosse necessário corrigir, “restabelecer o diálogo”.

 

            Falou também de “unidade respeitando as diferenças” e assinalou que, como primeiro passo, convocaria o Conselho Federal de Governo para que servisse de epicentro do diálogo com todos os setores e para conseguir o maior consenso possível em matéria econômica, social e política.  Também observou que o Presidente da PDVSA, bem como a junta por ele designada, haviam renunciado, com o que se pôs fim ao assunto que deu origem às últimas jornadas de protesto.

 

            Embora grande número de personalidades de instituições alheias ao Governo tivessem aceito o convite do Presidente para o diálogo, havia uma excessiva polarização, mesmo depois dos trágicos fatos ocorridos em 11 e 12 de abril, não somente dos protagonistas naturais da política, tais como o Governo, os partidos políticos e as bancadas da oposição, mas também de quase todas as organizações trabalhistas, empresariais, da sociedade civil, os representantes de alguns dos outros poderes do Estado e os meios de comunicação.  Essa excessiva polarização tinha conotações de intolerância que, na prática, impediam o diálogo democrático e a busca de acordos que permitissem certo entendimento para a manutenção da paz social.  Parecia prevalecer o convencimento de que era inevitável uma renovada confrontação entre amigos e contraditores do Governo, que poderia resultar em maior protesto social.

 

            Também quero assinalar uma prática perigosa de deliberação nas Forças Armadas, que determina que muitos protagonistas da vida pública estejam sempre atentos para a opinião dos oficiais das diferentes armas sobre os acontecimentos políticos, inclusive as ordens do seu Comandante em Chefe, o Presidente Constitucional da República.  Muitos deles procuram os fundamentos dessa forma de deliberação em artigos da Constituição.

 

            Os setores da oposição e outros protagonistas da visa social guardam, de diferentes medidas, distância das normas constitucionais.  Em especial, expressam preocupações quanto à separação e independência dos poderes públicos e à falta de contrapesos, uma vez que foram os seus titulares escolhidos pelas maiorias que imperaram na Assembléia.  Os deputados da oposição chamam a atenção para uma recente providência do Supremo Tribunal de Justiça que assinalou ter começado o período presidencial a partir do mês de janeiro de 2002.

 

            Depois dos mencionados acontecimentos, cresceu o número de denúncias de violação dos direitos humanos, de intimidação, de vandalismo e saques, de pessoas mortas e feridas. Isso ocorreu antes, durante e depois da recente crise.  Encaminhamos essas denúncias à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, em alguns casos, à Relatoria para a Liberdade de Expressão.

 

            Esta Missão recebeu numerosas queixas sobre a responsabilidade nesses fatos dos Círculos Bolivarianos, grupos de cidadãos ou organizações de base que apóiam o projeto político do Presidente. Muitos setores a eles atribuem a responsabilidade de violações de direitos humanos, de atos de intimidação e de saques.

 

            Os representantes dos donos dos meios de comunicação e um grupo de jornalistas consideram que os Círculos Bolivarianos são a maior ameaça à liberdade de imprensa e expressão.  Vários desses casos foram levados ao conhecimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e do Relator para a Liberdade de Expressão.  Faria bem ao Governo trabalhar nesses aspectos e dirimir muitas das graves preocupações suscitadas.

 

            Os representantes das cadeias de televisão se queixavam da maneira abrupta por que foram interrompidos os sinais dos canais de televisão privados, segundo eles infringindo-se a Lei Orgânica de Telecomunicações.  Isso produziu uma suspensão sistemática da sua programação com longas intervenções do Presidente e de outros funcionários do poder executivo nos dias anteriores a 11 de abril.  Também reclamavam que o governo, conforme recomenda a CIDH, fizesse “uma condenação categórica das agressões de que tinham sido objeto os profissionais de comunicação social”.

 

            Por outro lado, as autoridades que representam os poderes do Estado salientaram a falta de objetividade de alguns meios para informarem sobre as ocorrências que levaram à restauração da ordem constitucional.  Alguns meios registraram essa preocupação ou queixa e apresentaram explicações que não me cabe qualificar de satisfatórios ou não, como tampouco me cabe qualificar a validez das referidas queixas.

 

            Os membros dos partidos da oposição na Assembléia Nacional consideram conculcados os seus direitos como minoria.  Chamaram a atenção para o uso dos mecanismos da ley habilitante.  Trata-se de uma antiga disposição nas Constituições da Venezuela que confere ao Executivo um grande poder legislativo.  O Governo do Presidente Chávez fez amplo uso de tais faculdades, e isso demonstrou a grande resistência que gera a aprovação de normas sem o processo de negociação que se verifica no debate parlamentar e sem a discussão pública que se verificaria na Assembléia.

 

            A Central de Trabalhadores da Venezuela (CTV) salientou a imperiosa necessidade de que o Poder Executivo aceite a escolha de seus dirigentes segundo o resultado das eleições convocadas por iniciativa do próprio Governo nacional.  Essa Central e seus dirigentes são reconhecidos pela OIT, e essa exigência também pode ser observada à luz do artigo 10 da Carta Democrática.  Os dirigentes da CTV também reclamam a convocação do diálogo tripartite.

 

            Por essas considerações, nas reuniões com os diferentes setores, salientei ações que, a meu ver, devem ser urgentemente empreendidas a fim de evitar expressões de descontentamento mais tarde que possam dar origem à repetição dos trágicos acontecimentos de 11 e 12 de abril.  Em todo caso, é importante que hoje sejam reiterados alguns dos considerandos e disposições da resolução do Conselho, sobretudo no que se refere à condenação de qualquer transgressão da ordem constitucional, bem como dos violentos acontecimentos que levaram à morte de apreciável número de pessoas.

 

            A OEA, seus países membros, os demais países da comunidade internacional e organizações como a Igreja Católica, por intermédio da Conferência Episcopal, poderiam concorrer para propiciar o diálogo e assegurar que esses fatos não voltem a se repetir.

 

            Também quero ressaltar algumas medidas que devem ser tomadas para desativar alguns dos mais graves conflitos, recuperar a governabilidade, conseguir estabilidade política e favorecer a recuperação econômica.

 

            É fundamental que todos os setores da sociedade, pelo menos todos os que aqui citei, procurem mecanismos ou acordos que permitam fazer do respeito à Constituição a pedra angular e a base de ação de todos os protagonistas da vida pública venezuelana.

 

            É indispensável que se chegue a um acordo para que o artigo 350 da Constituição não seja interpretado como um direito geral à rebelião.  Essa interpretação pode levar a outros e piores atos de violência.  Todos devem contribuir para um acordo nesse sentido.

 

            É essencial que governo, oposição, forças sociais, organizações de direitos humanos e meios de comunicação se comprometam a rejeitar toda forma de deliberação da força pública e apóiem a aplicação dos códigos militares que punam tais condutas.  É essencial também que seja abandonada a interpretação segundo a qual o citado artigo da Constituição pode servir de base à conduta de oficiais de diferentes armas.  Reitero que, não avançar nesse sentido poderia dar ensejo a que se incorra em novos atos de insubordinação contra a autoridade civil.  Esta Assembléia deveria ser categórica ao assinalar a subordinação constitucional de todas as instituições do Estado à autoridade civil legalmente constituída, conforme dispõe o artigo 4 da Carta Democrática.

 

            Existe a imperiosa necessidade de recorrer unicamente aos meios pacíficos.  O Estado, sem sombra de dúvida, deve manter o monopólio do uso legítimo da força.  Devem ser investigadas as denúncias de que há setores que estão pondo em perigo esse componente essencial da segurança pública.  Em todo caso, qualquer uso das armas deve ser efetuado mediante autorização e segundo a normatividade acordada ou disposta pelas Forças Armadas.

 

            É de grande importância para a democracia venezuelana que a investigação sobre o trágico desenlace das manifestações de 11 de abril seja realizada de maneira que suas conclusões sejam por todos aceitas e que os responsáveis arquem com todo o peso da lei.  O que assinalo não deve ser interpretado como menosprezo dos poderes legitimamente constituídos.  Com um certo grau de vontade política se poderia conseguir esse resultado.  Em todo caso, que sirvam de lição os fatos ocorridos, pois com manifestações de várias centenas de milhares de pessoas os riscos são enormes.

 

            Fomos informados de que na Assembléia Nacional muito se avançou no sentido de constituir uma comissão de 25 membros que se encarregue de investigar os fatos, embora haja divergências quanto ao nome da comissão, ao mecanismo de constituição e à sua composição.

 

            O Governo e a oposição deveriam fazer todo o possível para afiançar a independência dos poderes e estabelecer seus devidos contrapesos.  Além da importância de assegurar a supremacia da Constituição, é fundamental restabelecer a confiança no estado de direito e assegurar que todos os segmentos sociais estejam dispostos a acatá-la.  Assim dispõe o artigo 4 da Carta Democrática.

 

            Qualquer acordo entre os diferentes setores da vida venezuelana deve passar, conforme dispõe a Carta Democrática, pelo pleno respeito à liberdade de expressão e, por conseguinte, de imprensa..  Deve ficar claro que qualquer queixa ou deficiência deve ser solucionada de acordo com a Declaração de Chapultepec.  A Secretaria-Geral expressou publicamente sua confiança em que o Governo do Presidente Chávez resolverá de maneira satisfatória as preocupações de segurança e intimidação que alegam os representantes dos meios de comunicação com os quais me reuni..

 

            No que tange à televisão, é importante acordar um código de conduta que assegure, além da legislação, a compatibilidade das transmissões de interesse público com a programação normal.

 

            A comunidade internacional deveria prestar apoio à Venezuela a fim de assegurar que, uma vez mais, os partidos e os agrupamentos ou movimentos políticos sejam os principais protagonistas da vida política.  A lacuna que deixaram e que outros setores sociais pretenderam preencher demonstrou de maneira clara suas limitações.  Caberiam aqui as medidas a que se refere o artigo 5 da Carta Democrática.

 

            Esta Missão agradece a hospitalidade e o adequado apoio que recebeu do Governo do Presidente Chávez.  Espero haver cumprido o disposto pelo nosso Conselho Permanente, ao submeter à sua consideração este relatório.  A OEA deve colocar-se à disposição do Governo e do povo da Venezuela para que da trágica experiência vivida se possa inferir atitudes e ações que nos assegurem que esses fatos infaustos e trágicos não voltarão a se repetir.  Muito obrigado.

 

AG01879P05